terça-feira, junho 21, 2011

Visão autoritária MERVAL PEREIRA

O Globo - 21/06/2011

Não terá sido por acaso que no espaço de poucos dias o governo federal
decidiu por medidas restritivas, em dois casos de repercussão
nacional, com o objetivo de impedir, por razões diversas, que a
sociedade se inteire de informações que estão sob o controle do
Executivo.

O cerne da questão é sua tendência controladora e autoritária, uma
continuidade do estilo implantado pelo antecessor e tutor político,
que sempre se incomodou com os órgãos de controle externo, seja o
Tribunal de Contas da União ou o Tribunal Superior Eleitoral nas
campanhas políticas.

A manutenção do chamado "sigilo eterno" para alguns documentos
oficiais é uma afronta, sobretudo, à sociedade, submetida a conviver
com uma "História oficial" que muito pouco tem de verdadeira.

A mudança de opinião da presidente Dilma Rousseff, que antes mesmo de
assumir a Presidência da República já defendia, na Casa Civil, a
adoção de uma legislação avançada de acesso a documentos públicos, em
nome da liberdade de expressão e da cidadania, tem a mesma
justificativa utilizada para esconder documentos referentes ao regime
militar: podem abrir feridas, causar mais danos do que benefícios.

Como se mentir sobre fatos históricos, ou escondê-los, fosse melhor
para o cidadão brasileiro e para a História do país do que conhecer
seu passado, em muitos casos para evitar que certos fatos se repitam.

Já a questão do Regime Diferenciado de Contratações (RDC), com que o
governo pretende recuperar o tempo perdido na execução das obras para
a Copa do Mundo de 2014, tem mais a ver com a incompetência
administrativa do que com outra coisa, embora a consequência possa ser
mais escândalos de corrupção.

Pode ser coincidência, mas, desde que o país foi anunciado como o
organizador da Copa do Mundo, comentava-se que as obras ficariam
atrasadas até que, por questões de emergência, os controles
fiscalizadores fossem afrouxados, permitindo um lucro maior aos
envolvidos nas obras.

Por isso mesmo, foi ridicularizada desde o início a afirmação do
presidente da CBF, Ricardo Teixeira, de que não haveria dinheiro
público nas obras da Copa, ficando tudo a cargo da iniciativa privada.

É verdade que há vários tribunais de contas pelos estados e municípios
que endurecem muito no processo licitatório, em vez de acompanhar a
execução do projeto depois.

O RDC tem o claro objetivo de mitigar o controle, especialmente na
fase licitatória, e vai exigir que os tribunais se desdobrem no
acompanhamento da execução.

Ontem mesmo o ministro do Supremo Gilmar Mendes, falando em tese,
defendeu a modernização da Lei 8.666, das licitações, para que torne
mais ágeis os mecanismos de fiscalização.

Mas é também fato que para fiscalizar as obras é preciso ter regras
fixas, porque há toda uma estrutura montada para esse trabalho,
programas de computador, pessoas treinadas.

O primeiro grande inconveniente é exatamente mudar as regras da
fiscalização em cima da hora, com as obras todas atrasadas. Na
prática, a mudança, se não impede, pelo menos dificulta muito a
fiscalização.

Mesmo que fosse para mudar a legislação para melhor, dizem
especialistas, teria que haver certo tempo para adaptar a estrutura de
fiscalização às novas regras.

A nova legislação também ampliou muito o alcance das novas regras,
permitindo que qualquer obra possa ser enquadrada nela, dependendo da
vontade do Executivo.

Em vez de se restringir o novo sistema a poucas obras, um hospital,
uma estrada, um aeroporto, qualquer obra pode ser considerada
importante para a realização da Copa do Mundo, mesmo que não esteja em
um estado onde os jogos se realizarão.

Pelas regras atuais, qualquer obra só pode ter seu preço aumentado em
25%, com as explicações necessárias, para evitar abusos.

Agora, sob a nova legislação, o gasto pode ser ampliado sem limites,
sob a justificativa de que pode haver uma exigência da Fifa que terá
de ser cumprida.

A questão mais polêmica, a cláusula do sigilo do preço básico, está
mobilizando até mesmo os principais líderes da base aliada, tendo o
presidente do Senado, José Sarney, já dado o sinal para que seja
derrubada.

Há países que usam esse sistema, mas não é nossa tradição nem há
previsão na Lei 8.666. Especialistas dizem que não há vantagem nesse
sigilo, pois o preço-base não é o preço máximo, não sendo proibido
reduzir esse preço.

Com o sigilo, a licitação fica sem parâmetros, e a alegação de que ele
impede a cartelização é considerada irreal, pois não há como impedir
que as empresas envolvidas em uma licitação se acertem antes de
apresentar seus preços, e nesse caso serão as empreiteiras que fixarão
o preço-base.

O fato é que o RDC afrouxa muito a lei de licitações quando aceita,
por exemplo, haver apenas um projeto básico, mesmo quando a
empreiteira pode assumir o chamado "contrato global" que não está
especificado.

Essa modalidade existe, mas aumenta o risco, a fiscalização fica mais
difícil. Se chegar ao fim da obra e der errado, como resolver? Quanto
mais cedo há a fiscalização, mais fácil evitar erros.

O inconveniente principal é criar dois sistemas de licitações de obras
públicas, tornando muito mais difícil fiscalizá-las.