Valor Econômico - 23/05/2011 |
Podemos resumir assim a questão do ministro Antonio Palocci: se, nos últimos anos, ele usou o conhecimento intelectual que obteve como ministro para aconselhar empresas, não cometeu falha legal nem, provavelmente, ética. Nossa lei não impõe quarentena após o exercício de cargos públicos. Mas, se ele empregou conhecimentos (ou relações) no governo para favorecer tais empresas, está errado moralmente e talvez também do ponto de vista legal. Como está errado se o que recebeu estes anos foi em recompensa por benefícios eventualmente concedidos a empresas. O problema é descobrir em qual hipótese está Palocci. Ele se recusa a abrir o nome de seus clientes. Isso deixa a questão em aberto. Se ele é honesto, publicar a relação de seus clientes viola um princípio básico da relação empresarial - o do sigilo entre as partes. Nenhuma empresa ou indivíduo é obrigado, em condições normais, a revelar com quem tem negócios ou amizade. Só o fisco tem direito a saber que clientes a consultoria Projeto teve. Essa informação não pode ser repassada a ninguém. Mas a grande dúvida está aí. Sem conhecer seus clientes e os serviços que lhes prestou, não sabemos se Palocci agiu bem ou não. É um círculo vicioso. Se ele divulgar a clientela, violará um preceito fundamental de confiança nos negócios, publicando um assunto privado. Mas, se não divulgar, não saberemos se o assunto era mesmo privado - ou se entrou em jogo o meu, o seu, o nosso dinheiro. O que fazer? Tenho uma proposta. Por que não confiar essas informações, hoje sigilosas, a uma comissão de pessoas que conheçam bem o mundo dos negócios e mereçam nosso pleno respeito ético? Não é impossível encontrar três notáveis, em cuja palavra possamos confiar, e que prometam guardar total segredo sobre o assunto - a não ser, claro, que concluam pela culpa do ministro. Porque, hoje, a situação é ruim. O ministro e o governo, não fornecendo detalhes sobre o caso, expõem-se à suspeita. O interesse do ministro, e sobretudo do governo, deveria estar em eliminar as desconfianças. Até agora, não conseguiram. Dizer que foi a empresa que enriqueceu, e não o dono de 99% dela, ou lembrar que seus antecessores no ministério também lucraram depois de sair do governo, não convence os desconfiados de que Palocci tenha agido corretamente. Por isso, sugiro: busquem-se três pessoas dignas, sem compromisso com a oposição nem o governo, que possam examinar o caso. Na verdade, e aqui mudo completamente de patamar, há muita preocupação de gente que simpatizou com o PT ou mesmo o ajudou a fundar, com a leniência do partido com a corrupção. Deixo claro que não saberia julgar o caso Palocci - nem a culpa ou inocência de Delúbio Soares. Mas conto uma história. Em 2010, durante a campanha eleitoral, encontrei um amigo. Ele estava irritadíssimo com o que chamou a corrupção no PT. Quando alguém lhe disse que os demais partidos agiam do mesmo modo, ele respondeu: "Mas o que PMDB, PSDB e DEM fazem ou fizeram não me importa! Não votei neles. Nunca tive esperança nenhuma neles. Agora, do PT, esperei que fosse um partido honesto. Não me decepciono com os outros. Com ele, sim". Já ouvi comentários dessa ordem. Quando fui diretor da Capes, alguns de meus colaboradores, servidores do Estado e não do governo, inclusive detentores de cargos de confiança, me diziam: "Sempre votei no PT mas, desde 2003, me desapontei; não voto mais nele". O estranho é que, na discussão política atual, essa voz "do meio" é pouco mencionada. Há pessoas que, porque o governo Lula introduziu definitivamente em nossa agenda política a questão social, relevam a complacência com a corrupção. E há quem, para condenar o governo petista, usa qualquer argumento, mesmo a mentira e o absurdo. Vemos defesa e ataque incondicionais. O que menos aparece são os matizes da decepção, de quem reconhece os ganhos sociais, mas lamenta o declínio moral. Porque o PT, durante vinte anos, foi o partido que unia ética e justiça social. Promover a justiça social era um imperativo ético. Ganhar eleições era secundário, o fundamental era mudar o país, a sociedade, acabar com a miséria e com a corrupção. Um bordão como o da oposição em 2006 - "Por um país decente, Alckmin para presidente"-, opondo a ética ao PT, seria impensável meros três anos antes. Esta não é a opinião apenas de inimigos do PT. Foi o que levou um dos ativos morais petistas, Helio Bicudo, a deixar o partido. Mesmo quem faz uma avaliação muito positiva do governo Lula, como Candido Mendes em seu Mudança e subcultura - por que me envergonho do meu país, afirma que houve corrupção. Mesmo quem avalia de maneira razoavelmente positiva as ações de Lula, como Perry Anderson, uma das referências da esquerda mundial, diz que houve corrupção. E não é porque o PT, desde 2002, ganhou votos entre os pobres que devem ser desdenhados seus antigos eleitores que se decepcionaram com ele no governo. Essas questões precisam ser tratadas a sério, sem se reduzir ao jogo político entre governismo e oposição. Concluo, dado que falei em Delúbio Soares, pela questão do "mensalão". Sabemos que logo prescreverão algumas acusações contra os indiciados. Mas por que o PT não tomou a dianteira e não confiou, a pessoas respeitadas pela gente de bem que há no Brasil, uma apuração independente, ética, do caso? Uma coisa é o que diga a Justiça, na qual há prazos, protelações e formalismos. Outra é o que a consciência ética conclua. É pena, e ouço amigos meus dizerem isso com freqüência, que o casamento que parecia indissolúvel do PT com a ética tenha se tornado uma relação frouxa. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras |