domingo, março 20, 2011

MARCELO GLEISER Conversa Sobre a Fé e a Ciência

FOLHA DE SÃO PAULO - 20/03/11

Os caminhos da razão e do espírito são um só: a busca por significado
em um mundo cheio de mistérios

NA SEMANA QUE VEM sai meu novo livro, em parceria com Frei Betto e com
intermediação de Waldemar Falcão, "Conversa Sobre a Fé e a Ciência",
pela Nova Fronteira. Temos alguns eventos no Rio e em São Paulo, de
que espero participar via teleconferência, aproveitando os benefícios
de nossa era digital.
Conversas sobre ciência e religião, em geral, terminam em briga. Mas
não deveriam. Talvez seja essa uma das lições mais importantes que
Frei Betto e eu queremos passar.
Reconheço que somos dois exemplos um pouco alternativos. Eu, como
cientista, mantenho uma posição de respeito pela religião. Frei Betto,
como pensador político e teólogo cristão, mantém uma posição aberta em
relação à ciência. Começamos a conversa sem nos conhecermos e
terminamos amigos.
Frei Betto concorda comigo que é absurdo fechar os olhos para os
avanços da ciência, negando suas descobertas. Concorda, também, que a
religião não deve ser usada fora de seu contexto, especialmente como
um substituto da ciência.
Usar a Bíblia como texto científico, tentar extrair de sua narrativa
simbólica fatos sobre o surgimento do Universo e da vida, é retornar
ao obscurantismo da Idade Média. Por outro lado, concordamos
plenamente que a ciência não se propõe a atingir uma verdade
"absoluta".
Verdades dependem de quando são formuladas, ou seja, do contexto
histórico em que são buscadas. Por exemplo, para os gregos, era
"verdade" que a Terra era o centro do Universo; até o fim do século
18, era "verdade" que o Sol era o centro do Universo; até 1924, era
"verdade" que a Via Láctea era a única galáxia no Universo. Com o
avanço da ciência, essas verdades foram substituídas por outras.
Apesar de não haver dúvida de que certos fatos científicos permanecem
inalterados com o passar do tempo (por exemplo, as leis de Newton),
chamá-los de "verdades" talvez seja imprudente.
A ciência é uma narrativa que se ocupa do mistério, do não saber. Ela
não tem capítulo final. Seu foco não é a busca pela verdade, mas por
uma descrição do mundo que esteja de acordo com nossas observações.
Por outro lado, as religiões organizadas, com seu dogmatismo
intransigente, distorcem o real sentido da fé. Nisso, Frei Betto e eu
também concordamos plenamente (para ver no que mais concordamos e no
que discordamos, é preciso ler o livro).
No cerne da religião, no ato de devoção religiosa, encontramos a
espiritualidade pura, individual, que tece uma relação profunda entre
o homem e o Universo e entre o homem e a sua consciência.
Frei Betto menciona Santa Teresa D'Ávila como alguém que alcançou um
nível exemplar de transcendência pessoal e de comunhão com o divino.
Aprendi muito durante nossa "conversa" e saí admirando meu
interlocutor ainda mais.
Vejo a ciência, no aspecto mais puro e humano, como uma busca por
transcendência, em que o espírito humano se une ao mundo natural para
criar novas formas de pensar a nossa existência e, por meio da
tecnologia, para criar expressões materiais dessa comunhão. Sob esse
prisma, os caminhos da razão e do espírito são um só, simbolizando a
essência do ser humano, que é a busca por significado num mundo cheio
de mistérios.