terça-feira, março 15, 2011

José Serra Cuidado com a contrarreforma

O Globo - 15/03/2011

Pouco tempo depois de promulgada a Constituição de 1988, que se
desenhou num ambiente francamente favorável ao parlamentarismo e
acabou, por vicissitudes várias, presidencialista, teve início o
debate da reforma política. Eu mesmo, na liderança do PSDB na Câmara
Federal, contribuí para dar impulso ao assunto. Volta e meia, com mais
ênfase nos meses que se seguem à eleição presidencial, o tema ganha o
noticiário, e, então, prometem as lideranças dos mais diversos
partidos: "Agora vai; faremos a reforma." E a promessa acaba sempre
desmoralizada pelos fatos. Trata-se de uma tarefa bem mais complexa do
que parece, e a situação se mostra ideal para o exercício da
facilidade na dificuldade - ou, como queria o jornalista americano H.
L. Mencken, apresentam-se soluções simples e erradas para problemas
complexos.

Desde logo, devemos nos perguntar: "Reforma política para quê?" Ou bem
estabelecemos o seu objetivo, ou a proposta se perde numa espécie de
fetichismo da mudança: "Temos de mudar porque temos de mudar." Esse
certamente é um mau caminho.

Entendo que uma reforma política deva atender a três demandas
principais, que concorrem para o aprimoramento da democracia: 1) é
preciso tornar as eleições mais baratas; 2) é preciso fortalecer os
partidos políticos; 3) é preciso aproximar o eleitor do eleito,
reforçando a representatividade. Infelizmente, o chamado sistema
proporcional, que temos hoje, eleva o custo da disputa a níveis
estratosféricos, permite que aventuras personalistas se sobreponham à
identidade partidária e obstaculiza a necessária proximidade entre
representante e representado. Estou, pois, entre os que consideram que
a mudança é necessária, mas, como se nota, ela há de ter propósitos
muito definidos.

Entre as propostas em exame, a pior de todas é o chamado "distritão":
os estados seriam considerados grandes distritos em que se elegeriam
os parlamentares com mais votos, sem levar em consideração o quociente
eleitoral obtido pelos partidos. Ora, essa alternativa concentraria
todos os vícios do modelo que temos hoje, eliminando a sua única
virtude:

- O custo das eleições aumentaria ainda mais, pois o candidato
continuaria a disputar votos numa base territorial imensa e não
contaria com os votos da sua legenda;

- Haveria uma espécie de "celebrização" do processo político; mais do
que hoje, pessoas sem qualquer vivência partidária poderiam usar a sua
popularidade como trampolim para a política;

- Os votos seriam dos candidatos, não dos partidos, enfraquecendo,
pois, as legendas;

- O divórcio entre representante e representado, a que assistimos
hoje, se manteria inalterado;

- A maior virtude do sistema proporcional, que distribui as cadeiras
segundo o peso de cada partido, se perderia.

O distritão, pois, significaria, na verdade uma contrarreforma
eleitoral; em vez de o sistema político progredir, ele regrediria.
Trata-se de uma proposta reacionária, que faz a democracia andar para
trás. E é preciso avançar. Mas como?

Se a reforma política pecou até agora pela inação, não será a
precipitação a melhor conselheira. Podemos fazer desse debate e do
processo de mudança um instrumento de educação política. Estou
convicto, e há exemplos mundo afora que endossam essa percepção, de
que o voto distrital realizaria todos os propósitos virtuosos de uma
reforma. Com ele, saberíamos, então, por que mudar, com que propósito:
os parlamentares disputariam votos numa base territorial definida, bem
menor do que aquela do atual sistema, e isso baratearia a eleição; os
candidatos de cada distrito seriam definidos pelos partidos, o que
concorreria para fortalecer as legendas; os eleitores de cada distrito
eleitoral saberiam o nome do "seu" parlamentar, mantendo com ele uma
proximidade hoje inexistente.

Não quero eu também ficar aqui a oferecer facilidades para problemas
difíceis. Sei que a introdução do voto distrital significaria uma
mudança de cultura política que não se faz da noite para o dia, daí,
então, o sentido desta proposta, que apela ao processo de educação
política. Haverá eleições municipais no ano que vem. Temos a chance de
introduzir o voto distrital para a escolha de vereadores nos 80
municípios brasileiros com mais de 200 mil eleitores. Essas cidades
somam hoje, aproximadamente, 47 milhões de eleitores - algo em torno
de 38% do eleitorado brasileiro. Seriam verdadeiros agentes de uma
nova política.

Essas cidades seriam divididas em distritos; os partidos apresentariam
seus candidatos a vereador; naquela área restrita em que buscarão
votos, travarão uma espécie de minidisputa majoritária, estreitando os
laços entre representante e representado. Distritos eleitorais seriam
definidos levando-se em conta, claro, o peso do eleitorado.

Não se trata de uma mudança fácil, mas de uma mudança correta, que tem
o claro propósito de aprimorar a representação e o processo
democrático. Na eleição municipal de 2012 seria introduzida uma
espécie de vírus benigno, que levaria a uma transformação virtuosa do
processo eleitoral nos estados e na Federação, em pleitos futuros. A
reforma eleitoral ganharia, assim, a característica de um processo de
educação política, até se realizar com a plena consolidação do voto
distrital no Brasil.

Não precisamos mudar por mudar. A reforma política, se vier, há de
atender aos primados da democracia, não às conveniências dessas ou
daquelas forças políticas circunstancialmente majoritárias. Afinal,
queremos um país que, em vez de referendar os erros do passado,
responda às demandas do futuro.