segunda-feira, março 14, 2011

DENIS LERRER ROSENFIELD Falsas clivagens

O Estado de S.Paulo - 14/03/11

O debate sobre a revisão do Código Florestal, que se intensificará nas
próximas semanas, está sofrendo um tipo de contaminação - eu diria de
poluição ideológica - que falsifica os termos mesmos da questão.
Clivagens totalmente equivocadas são produzidas ao sabor das
circunstâncias que atingem dimensões morais, sociais e políticas.
Todas se articulam em torno das palavras "ruralistas" e
"ambientalistas", empregadas por certos formadores de opinião como se
simplesmente descrevessem a realidade, quando, na verdade, a deformam.

Do ponto de vista moral, os "ambientalistas" se colocam numa posição
moralmente superior, como se fossem proprietários do "dever ser", dos
valores que deveriam nortear a sociedade e o Estado. Produziram, para
os inadvertidos, tal simbiose com as palavras "natureza" e
"moralidade" que, muitas vezes, fica difícil se colocar como seus
adversários. A razão é evidente. Os que seriam contra a sua posição
seriam, por definição, contra a "natureza" e contra a "moralidade". Ou
seja, o seu comportamento e as suas posições seriam "desinteressados",
essa suposta "isenção" se transmitindo a ONGs nacionais e
estrangeiras, assim como a ditos "movimentos sociais". Financiamento
estrangeiro de ONGs, concorrência de produtores rurais e empresas do
agronegócio estrangeiras, governos de outros países, posições
esquerdistas dos movimentos sociais que atuam como organizações
políticas desaparecem num passe de mágica, como se a moralidade fosse,
neles, incorporada.

A própria palavra "natureza" tem várias acepções, pois é dita das mais
distintas maneiras. Tomemos o seguinte exemplo. Para um francês e um
alemão, valendo essa formulação para qualquer país europeu, tão
amigáveis em relação ao meio ambiente, a palavra floresta designa
bosques que são utilizados para passeios, piqueniques e encontros
familiares. Assim, a "floresta" de Fontainebleau, na França, ou a
"floresta" negra na Alemanha, tão apreciadas, são "florestas"
antrópicas, produzidas pelo homem. Outros exemplos poderiam ser dados
em regiões produtoras de vinhos, logo de vinhedos, que são também
tomados como lugares de contato com a natureza. Isto é, áreas de
agricultura são consideradas também como áreas de preservação da
natureza.

Em termos ambientalistas, seriam eles devastadores da natureza, que
alteraram radicalmente as florestas nativas, as "verdadeiras"
florestas. Mas há um estranho silêncio sobre isso, os ambientalistas
europeus e brasileiros se irmanando na defesa da "natureza",
defendendo a "reserva legal", que seria, evidentemente, válida só para
o Brasil. Se a "reserva legal" é uma medida de preservação da
natureza, alguns diriam cientificamente "provada", por que não é ela
válida universalmente? Por que as ONGs internacionais não lutam pela
reserva legal em seus próprios países de origem? Por que a "verdade"
científica vale aqui, e não acolá? Por que os europeus e americanos
não recriam, com seus meios científicos e tecnológicos, as "florestas
nativas"?

Do ponto de vista social, a mesma falsa clivagem entre "ruralistas" e
"ambientalistas" se reproduz. O relatório do deputado Aldo Rebelo
seria coisa de "ruralistas", se não de latifundiários inescrupulosos.
Tomemos um exemplo. No final de fevereiro, a Federação dos
Trabalhadores em Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Fetag-RS)
lançou um abaixo-assinado defendendo abertamente a revisão do Código
Florestal. Observe-se que se trata de trabalhadores em agricultura,
agricultores familiares e pequenos agricultores, que estão
simplesmente defendendo o seu pão de cada dia. Temem, se não houver a
revisão, ser considerados "criminosos" ambientais da noite para o dia.
Dedicam-se às culturas de arroz, uva e maçã, por exemplo, feitas,
segundo os casos, em zonas de várzea ou em morros, que seriam
simplesmente inviabilizadas. Trabalham com a natureza, não se opõem a
ela, querendo ser simplesmente reconhecidos em seus cultivos, diria,
"naturais". Por que os "vinhedos" daqui são nocivos à "natureza",
enquanto os vinhedos europeus são simplesmente "naturais"?

Note-se que a Fetag-RS, assim como outras Fetags no País, se insurge
contra a insegurança jurídica, defendendo, inclusive, a segurança
alimentar. São contrários à quebra de contratos por meio de
legislações ambientais de efeito retroativo e querem que suas
propriedades e o seu trabalho sejam reconhecidos por aquilo que já
produzem em áreas consolidadas. Na verdade, o relatório do deputado
Aldo Rebelo retira todo esse contingente de trabalhadores e de
agricultores familiares da zona de ilegalidade. São tratados como
pessoas, e não como "criminosos". Ademais, convém ressaltar que sua
defesa da "segurança alimentar" os afasta de ditos movimentos sociais
como o MST e a Via Campesina, que procuram inviabilizar a economia
mesmo de mercado e o direito de propriedade.

Do ponto de vista político, a clivagem "ruralistas" e "ambientalistas"
tampouco reproduz a dicotomia entre "direita" e "esquerda", ou base
aliada e oposição, como esses últimos pretendem fazer crer. Suas
formulações não resistem nem à mais superficial análise da realidade.
O deputado Aldo Rebelo é do PCdoB, e um membro da base aliada. Com
ele, tanto na comissão quanto fora dela, estão deputados do PT que
defendem as mesmas posições. O mesmo vale para os outros partidos, em
especial para o PMDB, outro importante partido da base governamental.
Logo, a "esquerda" estaria do lado da revisão do Código Florestal, ao
contrário do que é sustentado por ONGs e "movimentos sociais". É bem
verdade que deputados da base aliada se encontram também entre os
adversários do relatório. O PSDB, por sua vez, se encontra igualmente
dividido, com parlamentares seus situados em um e em outro lado. Isso
mostra simplesmente a inadequação da utilização da clivagem entre
"ruralistas" e "ambientalistas", entre "direita" e "esquerda".

O mundo maniqueísta foi simplesmente deixado de lado.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS.