domingo, fevereiro 06, 2011

Tempestade no deserto:: Míriam Leitão

O Egito magnetiza o mundo porque é um dos mais complexos fatos contemporâneos. Não há uma única explicação simples. Tudo é espantosamente complicado quando se tenta entender causas e consequências. Eventos que aparentemente não estão ligados misturam-se elevando o grau de tensão e incerteza: desemprego de jovens, revolução da comunicação, luta contra tiranias, preço de alimentos.

A imprevisibilidade tem estado presente desde o início dos fatos. Quando um rapaz vendedor de verduras ateou fogo ao corpo na Tunísia, ninguém imaginaria que isso acabaria provocando a queda de um ditador que estava no poder há 23 anos. No entanto, hoje Ben Ali está refugiado na Arábia Saudita. A Jordânia fez reformas no governo. O Iêmen avisou que haverá alternância no poder em 2013. A Argélia avisou que o estado de emergência que vigorou por 19 anos será suspenso. O Egito está vivendo dias dramáticos. O governo americano teve que mudar suas posições e fazer pronunciamentos que seriam impensáveis tempos atrás contra o que era apresentado como: "confiável aliado" e um "governo estável." Todos olham para outros países pensando quem mais poderá ser atingido pela verdadeira tempestade no deserto: Síria, Líbia e até, quem sabe, a Arábia Saudita.

O que o jovem Mohammed Bouazizi da Tunísia tinha que provocou um efeito dominó do qual ainda não se sabe o final? Tinha sonhos não realizados. Ele estudou, fez universidade, achou que iria além dos seus pais. Mas, desempregado, decidiu ter uma banca de verduras na qual era achacado por policiais corruptos. Um dia, os policiais tomaram a sua barraca. A frustração e a raiva foram além do que ele podia suportar. Depois de se imolar, ele ainda sofreu por 23 dias no hospital antes de morrer.

Jovens com sonhos não realizados, prisioneiros de situações tirânicas - das pequenas ou grandes autoridades - e que se sentem num beco sem saída podem habitar qualquer país, em qualquer dos mundos do mundo, em qualquer religião ou cultura. Ele pareceu o retrato no espelho para jovens de vários outros países no Norte da África.

Hoje, o fenômeno do desemprego de jovens é mundial: ocorre em países ricos como Estados Unidos, Espanha. Em países emergentes que crescem. É problema urgente. Numa democracia como o Brasil, deve estar no topo da agenda. As empresas falam em pleno emprego, e o Brasil fechou seu melhor ano com uma taxa média de 14,9% de desemprego entre 18 a 24 anos.

A ditadura de Ben Ali demorou a cair mais do que nos damos conta. O rapaz jogou fogo ao corpo em dezembro, morreu no dia 4 de janeiro, e o presidente fugiu no dia 14. Mas enquanto foi a Tunísia, o Ocidente olhou apenas com curiosidade. Quando a fúria chegou ao Cairo, capital do país que sempre foi considerado uma peça central no xadrez da parte mais complicada do mundo, todos viram.

Foi quando tantos se deram conta da nossa piramidal ignorância sobre os fenômenos do mundo árabe e muçulmano. No primeiro momento, algumas análises apontavam o Egito como a véspera do Irã de 1978, sem ver todas as inúmeras matizes que existem no Oriente. Vários dias de noticiário intenso, de surpresas, e de consultas a quem entende ou acompanha de perto ajudaram a vislumbrar algumas nuances.

A fúria dos manifestantes armados pelo estado policial comandado durante 30 anos por Hosni Mubarak abateu-se com a mesma intensidade sobre a CNN e a Al Jazeera, que se apresenta como "uma visão alternativa", e que, a propósito, não é transmitida nos Estados Unidos, apesar de ser vista pela internet. A TV iraniana em inglês, a PressTV, que se propõe a ser uma alternativa persa no mundo islâmico, também transmitia as mesmas imagens, frequentemente com as mesmas avaliações dos fatos. A diferença era o destaque à interpretação do Aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, de que o que está acontecendo da Tunísia ao Egito é o eco das vozes da revolução islâmica iraniana.

Se John McCain, Barack Obama e Ali Khamenei fazem declarações a favor dos mesmos manifestantes, alguém não está entendendo direito o que está acontecendo. A esperança é que seja o Aiatolá, por uma boa razão: um dos elementos da rebelião é sem dúvida a luta contra tiranias; nisso se parece com a revolução verde que pôs tantos iranianos na rua de Teerã, em 2009, e que produziu uma avassaladora repressão. As cenas dos jovens iranianos na rua - e até da morte da jovem Neda - foram imediatamente postadas pelas redes sociais. Esse é outro fenômeno inteiramente novo do qual se sabe pouco. Duas coisas já podem ser ditas sobre as novas tecnologias de comunicação: elas não criam explosões sociais, mas aumentam a velocidade do fenômeno do contágio; elas são a forma de contornar a censura imposta pelas ditaduras mas podem ser usadas para disseminar mensagens falsas que interessam ao poder tirânico. Mostraram o que Mubarak não queria que fosse visto; mas o governo de Mubarack obrigou empresas ocidentais a divulgaram mensagens de apoio a ele.

Num mundo já complicado, há outra peça do xadrez. O preço da alimentação que consome 40% do orçamento da classe média egípcia e deixa desamparada a vasta pobreza do país pode subir ainda mais por causa dos fenômenos climáticos extremos e constantes em vários países produtores.

O governo que sucederá Hosni Mubarak terá uma pesada herança. O imenso estrago da economia é só um dos elementos. O custo do governo é outro. O país tem sete milhões de funcionários públicos, destes, as Forças Armadas e policiais são exorbitantes três milhões. O Egito não sobrevive sem o cheque americano de US$1,5 bilhão por ano.

FONTE: O GLOBO