Gouverner c’est choisir - governar é fazer escolhas -, dizia o intelectual e político francês Mendez-France, primeiro-ministro daquele país na segunda metade dos anos 50.
O governo Dilma está diante de escolhas. Não falo das que fazem parte da rotina de qualquer governo, a qualquer tempo, em qualquer lugar. Falo das que podem definir rumos para o País. A demanda global crescente por minerais, petróleo e, principalmente, alimentos - tendência estrutural que não deve esmorecer tão cedo e em grande medida nos favorece - gera receita e oportunidades para os setores produtores de commodities, ao mesmo tempo que cria pressões sobre o meio ambiente e a indústria de transformação.
Não são propriamente questões novas. Já estavam aí. Tornaram-se, no entanto, mais prementes. E menos suscetíveis de decisões que representem puro compromisso circunstancial. Dilma terá de impor com mais nitidez limites às muitas agendas setoriais em disputa dentro do seu governo. E sinalizar rumos com mais clareza, em questões centrais e conflituosas que pedem decisão.
Tremendo desafio político, considerando a diversidade das forças que compõem a base de apoio construída por Lula para a sua eleição.
Em artigo recente neste espaço, André Nassar apresentou estimativas sobre o aumento do consumo global de um conjunto de produtos agropecuários. Vale a pena citá-lo: "A FAO nos diz, com base em cenários de demanda, que a produção de carnes precisa crescer 48% de hoje a 2030 e mais 21% de 2030 a 2050. O milho (...) terá de crescer 30%, no primeiro período, e mais 17%, no segundo. Oleaginosas, como a soja, (...) terão de crescer 43% e 37%, respectivamente. Açúcar, 60% e 15%, levando em conta iguais períodos. Mesmo o arroz, produto menos dinâmico, terá de crescer 19% e 4%. De hoje a 2050 o mundo terá de produzir mais 1 bilhão de toneladas de milho e oleaginosas, sendo necessários 90 milhões de hectares a mais; 60% dos quais terão de estar em produção até 2030 (só para essas culturas)".
Em todos os produtos mencionados, acrescenta Nassar, a produção brasileira tem ampliado a sua fatia na produção mundial. E aqui ainda há terras disponíveis, de boa qualidade e relativamente baratas, a despeito da valorização recente. Não surpreende, portanto, que o investimento na compra de terras para produção agropecuária venha crescendo no Brasil, atraindo, entre outros, grandes fundos de investimento estrangeiros.
Nas últimas duas décadas, a produção agrícola brasileira cresceu praticamente sem expansão da área plantada, indicando ganhos significativos de produtividade, sobretudo em grãos. Segundo os especialistas, no entanto, será difícil que os futuros ganhos de produtividade acompanhem o crescimento da demanda por alimentos. Já a pecuária se expandiu de forma extensiva, sendo a principal responsável pelo desmatamento nesse período. Tem muito a ganhar em produtividade.
Será possível abocanhar parte significativa da demanda global por alimentos nas próximas décadas "apenas" substituindo pastagens degradadas por área plantada e intensificando o uso da pecuária nas pastagens de boa qualidade, sem desmatamento adicional algum? Ou valeria a pena incorporar novas áreas do Cerrado, sabidamente aptas à agricultura, ainda que com o sacrifício de alguma cobertura vegetal? São questões que a controversa mudança do Código Florestal não esgota e que exigirão do governo, se quiser enfrentá-las, e não apenas empurrá-las com a barriga, o uso do capital político recebido das urnas, seja qual for a escolha que vier a ser feita.
Chegou a hora também de fazer escolhas sobre o futuro da indústria brasileira. Desde os primórdios da abertura da economia ergueram-se vozes contra a suposta "desindustrialização" do País. Choradeira da "velha indústria" acostumada com a proteção estatal? Em boa parte, sim: descontados problemas metodológicos, que engrandecem artificialmente a perda de participação da indústria de transformação no PIB, ela até aqui se mostrou capaz de responder aos desafios da competição, mesmo em condições adversas, como indica, por exemplo, o fato de que não caiu, na pior das hipóteses, o emprego total na indústria de transformação, desde meados dos anos 90, a despeito de sua redução nas áreas metropolitanas.
Houve, porém, uma quebra estrutural nas condições do jogo global, com a entrada em campo da China e outros produtores competitivos de manufaturas, na contraface do aumento global da demanda por commodities. E essa quebra se vem aprofundando. A queda da participação dos manufaturados na pauta exportadora do País nos últimos anos chama a atenção, assim como o número de empresas que reportam perda de mercados para competidores chineses, aqui e lá fora, em pesquisa recente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Para Antonio Barros de Castro, diretor e assessor do BNDES no governo Lula, a indústria brasileira, quando vista da ótica global, é quase toda ela "descartável". Tudo aponta na direção de uma veloz especialização da economia brasileira em recursos naturais. Isso nos favorece no longo prazo, em matéria de emprego e progresso técnico, portanto de desenvolvimento e bem-estar futuros? A resposta não é simples, mas implicará escolhas. De imediato, cabe perguntar: haverá desoneração da folha de pagamento da indústria de transformação, para toda ela ou para alguns setores? E, se houver, novos cortes de despesa deverão ser feitos? A médio prazo, é preciso saber se vale a pena apostar tantas fichas numa atividade baseada na exploração de um recurso natural não renovável - o petróleo -, grande emissora de gases de efeito estufa, toda ela articulada em torno da Petrobrás e que certamente absorverá grande quantidade de recursos financeiros e fatores de produção. Também não há respostas claras para essas perguntas. Mas uma coisa é certa: escolhas deverão ser feitas, e não será possível satisfazer a todos.
Diretor Executivo do IFHC, é membro do GACINT-USP