sexta-feira, fevereiro 18, 2011

Rogério L. Furquim Werneck Ligação clandestina

O anúncio de corte de gastos feito na semana passada não teve a repercussão que o governo esperava. Por duas razões básicas. O corte parece menor do que o necessário e, ao mesmo tempo, maior do que o ajuste que o governo, de fato, se mostra disposto a fazer. Mas há uma terceira razão para se duvidar do real compromisso do governo com a mudança da política fiscal. Boa parte da expansão fiscal dos últimos anos tem-se dado por fora do Orçamento, com base num artifício contábil que tem permitido ao Tesouro transferir centenas de bilhões de reais ao BNDES, sem o devido registro nas contas de resultado primário e dívida líquida do governo. E, agora, em meio à discussão sobre um suposto corte de gastos de R$50 bilhões, noticia-se que o governo já contempla novo aporte do Tesouro ao BNDES, de R$55 bilhões. Já é tempo de se tratar essa questão com a seriedade que merece.

A história é bem conhecida. Em 2008, preocupado com os efeitos da crise mundial sobre a economia brasileira, o governo decidiu capitalizar o BNDES para que pudesse expandir seus empréstimos a empresas estatais e privadas. Mas uma capitalização nos moldes tradicionais, que aumentasse o capital próprio do banco, reduziria o resultado primário e aumentaria a dívida líquida do governo. Para dissimular o impacto sobre as contas públicas, o governo decidiu partir para o subterfúgio da capitalização velada. O BNDES foi agraciado pelo Tesouro com empréstimos de 30 anos e juros pesadamente subsidiados. Para bancar tais empréstimos, o Tesouro teve de emitir dívida. E isso inflou a dívida bruta, mas não a dívida líquida, porque, ao calculá-la, o Tesouro se permitiu abater da dívida bruta, como ativos, os créditos de 30 anos que havia constituído junto ao BNDES.

O governo vem recorrendo a esse subterfúgio, ano após ano, desde 2008. As estatísticas de dívida bruta do Governo federal, em dezembro de 2010, mostram que os créditos do Tesouro junto ao BNDES já ultrapassam R$230 bilhões. Pode-se verificar que R$28,8 bilhões foram acumulados ao longo de 2008, R$93,8 bilhões em 2009 e R$107,5 bilhões em 2010. Em percentagem do PIB, tais valores correspondem a 0,9%, 2,9% e, novamente, 2,9%.

O governo tem ressaltado a importância fundamental que tiveram os empréstimos do Tesouro ao BNDES na contenção da crise, em 2008 e 2009, por terem propiciado a injeção de forte estímulo à demanda agregada. E, de fato, um impulso fiscal de 0,9% do PIB em 2008, seguido de novo impulso de nada menos que 2,9% do PIB em 2009, configura um estímulo extraordinário. O problema é que, apesar de todos os sinais de vigorosa recuperação em 2010, o governo entendeu que deveria continuar a estimular a economia com novas transferências do Tesouro ao BNDES da ordem de 2,9% do PIB no ano passado.

Esse impulso fiscal foi muito maior do que o que adveio da deterioração da conta oficial de resultado primário em 2010 (que deixa de fora a capitalização do BNDES), mesmo quando as cifras são recalculadas sem apelo à notória alquimia contábil a que tem recorrido o governo. Não faz sentido, portanto, discutir como a política fiscal deve ser corrigida, em face do sobreaquecimento da economia, sem levar em conta os impulsos fiscais que têm sido gerados pelas gigantescas transferências do Tesouro ao BNDES. É indefensável que, a essa altura dos acontecimentos, a economia volte a ser estimulada com um impulso fiscal de mais de 1,3% do PIB, que é o que adviria de um novo aporte de R$55 bilhões do Tesouro ao BNDES.

Chegou a hora de fechar o orçamento fiscal paralelo que o governo tem mantido no BNDES, por meio de operações dissimuladas de capitalização da instituição pelo Tesouro. A dissimulação tem trazido descrédito às contas públicas e à política fiscal. E já não ilude ninguém. O próprio FMI tem assinalado em suas publicações que as estatísticas de resultado fiscal do Brasil omitem transferências do Tesouro ao BNDES da ordem de 3% do PIB, tanto em 2009 como em 2010. Até quando o governo vai insistir nesse papelão?

Rogério L. Furquim Werneck é economista.

FONTE: O GLOBO