Lotado na embaixada em Washington entre 1973 e 1975, pude sentir de perto as então fortes contradições de interesses entre Brasil e Estados Unidos. Viria depois a vivenciar muitas delas, de forma mais intensa, como assessor na área econômica do secretário-geral e depois chanceler Saraiva Guerreiro, entre 1976 e 1984. Comércio bilateral, rodadas comerciais multilaterais, dívida externa, diálogo Norte-Sul, energia nuclear, política econômica: em muitos temas víamos os Estados Unidos como o grande adversário, o grande oponente, o principal obstáculo a nossos desígnios de desenvolvimento. Vinte anos mais tarde, em abril de 2004, após longo périplo por outras plagas, encontrei-me embaixador em Washington. Ao longo de minha gestão, até janeiro de 2007, fui testemunha de notáveis mudanças. O relacionamento bilateral, outrora tão acentuadamente assimétrico e por vezes mesmo antagônico, passava por acelerado processo de transformação. Questão antes de vida ou morte, a dívida externa havia pura e simplesmente sido por nós tirada do mapa. A vulnerabilidade externa, manifestada pela última vez em 1999, ao impacto da crise asiática, se reduzia. Divergências em torno da Alca e Doha já não mais tinham impacto sobre o conjunto do relacionamento. Tornava-se frondosa a tessitura das relações, com a criação de numerosos mecanismos de diálogo e cooperação. Uma visão recíproca, calcada em maior objetividade e pragmatismo, viabilizava inédito sentido de parceria e convergência de interesses. Etanol, energia, igualdade racial, apoio à África propiciavam oportunidades de somar esforços em temas de interesse comum, e também em favor de terceiros.
O que se vem dando é uma verdadeira mudança na natureza mesma do relacionamento Brasil-Estados Unidos. Claro está ser ele ainda marcado por acentuada assimetria quantitativa: o PIB americano, de mais de US$ 14 trilhões, é cerca de sete vezes o nosso. Mas era mais do que dez vezes maior até poucos anos atrás, e a brecha tende a diminuir com o Brasil crescendo mais rapidamente do que os Estados Unidos. Algo novo sobressai: está em curso drástica mudança na dinâmica desse relacionamento. Marca-o hoje um novo sentido de mutualidade, entrelaçamento e interdependência. Torna-se o Brasil investidor de considerável monta nos Estados Unidos. As multinacionais americanas aqui faturam alto. Geram, assim, substanciosas remessas de lucros a suas matrizes. Parte expressiva de nossas reservas de US$ 300 bilhões financia o Tesouro americano. E o relacionamento bilateral é impactado pelas profundas mudanças na inserção externa do Brasil. Pois passamos de fator de crise e instabilidade à condição de atores influentes na busca de soluções para desafios globais de variada ordem. Na economia, no comércio, nas finanças, no ambiente, no clima, em questões de paz e segurança.
Feita essa constatação, passo a algumas reflexões, à guisa de contribuição para que essa saudável evolução - que é, a rigor, também do interesse dos Estados Unidos - se consolide e amplie.
Do lado brasileiro, convém deixarmos para trás a visão dos Estados Unidos como adversários, e passarmos a tê-los, em variadas situações em que isso se afigura válido, como companheiros de jornada rumo a níveis mais elevados de desenvolvimento interno e de projeção externa. Não cometamos o equívoco de achar que conquistaremos posições decisórias na reconfiguração do sistema internacional contra os Estados Unidos, ou à sua revelia. Não cabe supormos que afastamento ou contraposição gratuita sirvam a nossas conveniências de longo prazo. Regozijemo-nos com a diluição do poder no plano internacional e o surgimento de novos poderes e polos - mas não cometamos o erro de subestimar a capacidade de inovação da economia, e de renovação da sociedade americana. Alegremo-nos, por breve momento, com o fato inédito de estarmos bem quando os Estados Unidos enfrentam ainda prolongada crise - mas não celebremos as dificuldades por eles vividas, que acarretam prejuízos também a nossos interesses. Sigamos a promover a integração regional, mas não tenhamos ilusões quanto a que nossos vizinhos se disponham a fazer opção preferencial pelo Brasil em detrimento dos Estados Unidos. Nem vejamos a integração sul-americana, ou novas parcerias com outros emergentes, como alternativas a mais intenso intercâmbio com os Estados Unidos, ainda por longo tempo a maior economia, o maior mercado e a principal fonte de inovação no mundo.
Quanto aos Estados Unidos, cabe esperar que sejam capazes de avançar no reconhecimento das especificidades que conferem ao Brasil singular "soft power" no plano internacional. Foi graças a isso que ajudamos a fazer de nosso entorno região privilegiadamente pacífica e distante dos eixos de tensão geopolítica que tanto atormentam outros continentes. Não deve Washington entreter a ilusão de ver o Brasil como "aliado", disposto a alinhar-se prestimosamente com suas posturas. Não faz sentido suponham os Estados Unidos que o Brasil deva "corresponder" a preferências ou expectativas suas. As convergências, que só tendem a aumentar com as mudanças no relacionamento bilateral e as novas realidades internacionais, serão tanto mais legítimas e frutíferas quanto verdadeiramente expressivas dos melhores interesses de cada lado. Tampouco faz sentido certa tendência, neste momento visível em Washington, de "punir" o Brasil pela atitude que teve o governo anterior no caso iraniano, negando endosso a nossa postulação, hoje mais justificada do que nunca, por assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. No plano regional, é importante que os Estados Unidos não vejam a aglutinação econômica e politica da América do Sul (e, em alguns casos, da América Latina) como hostis a seus desideratos.
A visita do presidente Obama pode abrir nova e promissora etapa no relacionamento bilateral. As bases para isso foram dadas por avanços significativos, mas ainda incrementais. A hora é chegada para a consagração de uma nova parceria, lastreada em projeção de sentido verdadeiramente estratégico do potencial de benefícios que as relações bilaterais cada vez mais tendem a acarretar, para os dois povos e para o resto do mundo.
Roberto Abdenur, diplomata aposentado, integrou o serviço exterior brasileiro por 44 anos. Foi secretário-geral do Itamaraty e embaixador no Equador, China, Alemanha, Áustria e Estados Unidos
Clicar para ler original
Roberto Abdenur
Data:
25/02/2011