O GLOBO - 22/09/10
Claude Lévi-Strauss me ensinou que é uma tolice tentar separar domesticado e civilizador (por oposição ao fogo selvagem e descontrolado) e, por isso, diz o estruturalismo, é preciso saber por que na mitologia grega o fogo era dos deuses que são seres sobre-humanos; ao passo que, na mitologia das sociedades tribais da América do Sul, a posse de elementos essenciais à sociedade, como o fogo, pertence a animais.
Saber por que é uma onça que dá o fogo à humanidade é a questão central. É ela que vai ajudar a compreender certos processos e enxergar além das rotinas.
Machado de Assis, décadas antes de Lévi-Strauss, faz algo semelhante no seu conto "A sereníssima República".
Nele, uma comunidade de aranhas que quer ser republicana cria partidos e constrói sistemas eleitorais.
De saída criam uma agremiação retilínea porque as teias que tecem seriam retas e a reta é o reto: o direito.
Surge, porém, uma dissidência que funda o partido curvilíneo porque, para eles, as teias eram de fato curvas e recurvada é a parte boa da natureza. Da discussão, nasce um partido radical: o reto-curvilíneo que, como o nosso governo populista, messiânico, capitalista, personalista e de coalizão, diz que o ideal é chutar com os dois pés e, se possível, usar também a cabeça e a mão. No Brasil, sociedade escravocrata e familística, os partidos são todos trabalhistas e preocupados com os pobres, os famintos e os operários. Não temos partidos de empresários, banqueiros e comerciantes. Fundados os partidos, as aranhas realizam eleições mas descobrem um fato perturbador: o número de eleitores não bate com os votos! Mas como eram aranhas e formalistas atacaram o problema de modo radical: mudaram o feitio das urnas! E assim foram fazendo como nós, brasileiros pós-modernos e cosmopolitas, que pensamos resolver os nossos problemas mais prementes com leis e por meio do Estado.
Reclamamos que esta eleição não tem debates arrebatadores, capazes de transformá-la num jogo de final de Copa do Mundo, mas - como as aranhas do Cônego Vargas - esquecemos um dado crítico: o modo pelo qual o processo eleitoral tem sido encaminhado desde o seu início. E a marca mais visível de sua paisagem não é exatamente a ausência de grandes projetos, mas a presença de um majestoso projeto de continuidade de poder que, por estar tão presente na nossa mentalidade política, passa tão despercebido quanto as tentativas das aranhas quando tolamente equacionavam a forma das urnas com a honestidade eleitoral.
Ora, o que vivemos hoje no Brasil não é mais a discussão de um plano para liquidar a inflação, deter o comunismo ou o fascismo; ou dividir o latifúndio. Não! O que está hoje em cena é o fantasma de uma total ausência de limites porque o Poder Executivo abriu mão do seu papel de gerente moral do sistema e virou um entusiasmado cabo eleitoral.
Se tirarmos essa inovação, só temos convergências, pois os problemas são claros e óbvios: é preciso uma reforma política e um sistema eleitoral que amarre os eleitores e os seus representantes de modo inequívoco; é necessário liquidar as suplências e o controle dos partidos sobre os candidatos; é urgente um programa educacional que ensine e viver mais igualitariamente e menos autoritariamente.
Mas, tal como ocorria com as aranhas, o que passa sem discussão é o projeto sem o qual nenhuma disputa pode ocorrer: o respeito pela regras do jogo, os limites de cada ator junto aos seus papéis, o movimento da sociedade sobre si mesma, fazendo com que seus administradores sejam menos condescendentes e digam não a si mesmos, adotando um comportamento ético.
Esse honrar as normas, essa internalização de limites é o ponto crítico desta disputa eleitoral. Nela, não cabe apenas discutir a morte do planeta e das florestas, as escolas públicas, a violência urbana, a criminalidade e a saúde, mas - sobretudo e acima de tudo - como essas coisas serão alcançadas, como serão implementadas, que tipo de gerenciamento irá torná-las concretas. Em outras palavras, falta um programa que anuncie uma participação maior da sociedade no governo e no Estado.
Falta discutir os limites dos papéis vigentes nos cargos do governo para que eles possam ser efetivamente úteis à sociedade para os quais foram criados e não uma fonte de nepotismo e de riqueza ilícita para os seus ocupantes. Numa palavra, falta roubar o fogo da onça. Ou seja: discutir a sinceridade e a ausência de demagogia como programas. Como os programas mais importantes para tornar o Brasil um ator planetário neste século.