O Estado de S.Paulo - 29/08/10
O que aconteceria se Lula, mesmo com 80% de aprovação popular, tivesse adiado o tradicional carnaval de fevereiro para o mês de abril, em homenagem a um de seus ministros, o mais querido (quem seria?), se acaso este deixasse nosso meio às vésperas da festança do Rei Momo? O povão de Salvador, do Recife, do Rio de Janeiro e de outras capitais, fazendo coro ao seu herói, teria começado o fuzuê apenas dois meses depois? Pouco provável. Mais certo seria apostar na repetição da História. Em fevereiro de 1912, às vésperas do carnaval, morria o Barão do Rio Branco, a figura mais insigne da história de nossa diplomacia. Ministro das Relações Exteriores desde o governo Rodrigues Alves, ganhou homenagem póstuma do marechal Hermes, presidente da República, com o adiamento do carnaval. O que fez a turba? Foi para as ruas em fevereiro, brincou em abril e ainda gozou a decisão presidencial solfejando a estrofe do jornal A Noite: "Com a morte do Barão,/ tivemos dois carnavá./ Ai que bom, ai que gostoso,/ se morresse o marechá."
A galhofa, o deboche, o toque irreverente são traços marcantes do caráter nacional. Quando represados por uma engrenagem de normas e proibições, sempre encontram o jeitinho das águas e acabam se infiltrando nas frestas das rochas para seguir seu fluxo. A imagem vem a propósito da proibição de usar o humor para caricaturar a política, neste momento em que candidatos se apresentam à avaliação do povo, que escolherá em outubro os novos quadros da democracia representativa. O impedimento abarca conceitos como "trucagem, montagem ou outro recurso de áudio e vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação". Ao fim e ao cabo, trata-se de impor sanções aos humoristas.
A simples comparação entre passado e presente mostra que o atual momento político-institucional tem imposto freios à criatividade. Basta um rápido olhar no ciclo dos governantes que habitaram a República no Catete. Foram figuras emolduradas pelos humoristas da época. A historiadora Isabel Lustosa apresenta a galeria que começa com o Biriba (Prudente de Moraes), passando pelo Patriarca do Baranhão (Campos Sales), Papai Grande (Rodrigues Alves), Tico-Tico (Afonso Pena), Moleque Presepeiro (Nilo Peçanha), Dudu e a Urucubaca (Hermes da Fonseca), Tio Pita (Epitácio Pessoa), Seu Mé (Artur Bernardes), Rei da Fuzarca (Washington Luis), chegando a Gegê (Getúlio Vargas) e JK. O cotidiano dos governantes era satirizado por um conjunto de revistas e jornais ilustrados. Mesmo perfis carrancudos aguentavam o tranco. Getúlio, então, era muito gozado pela vontade de se perpetuar no poder. Em outubro de 1945, por exemplo, botava-se em sua boca a piada: "Meu candidato é o Eurico; mas, se houver oportunidade, Eu Fico."
Qualquer pedaço de nossa História registra criativa contribuição do humor como ferramenta de crítica social. É verdade, porém, que ele tem perdido substância, de um lado, porque a política se distanciou da sociedade e, de outro, porque o próprio corpo legislativo, para salvaguardar a imagem, procurou esculpir um conjunto de normas para restringir a semântica e a estética da arte humorística. Sob a hipótese de que o chiste possa embalar perfis com o celofane da desmoralização, os legisladores acabaram criando uma camisa de força que delimita o espaço criativo de uma arte que satiriza o universo político desde a Idade Média. O paradoxo é inevitável: em plena sociedade da informação, sob o escudo dos direitos individuais e coletivos, entre eles o de liberdade de manifestação do pensamento, cerne da democracia, apertam-se os elos da expressão artística. Um absurdo dentro do Estado democrático. Por que orientação tão canhestra tem assento na mesa central de nossa democracia? Pela simples razão de que os representantes se valem da pletora dos direitos da cidadania para apontar prejuízos ao seu conceito ao se verem desenhados nas telas do humor. Seu argumento é de que os pincéis tornam alguns nomes "ridicularizados", quebrando-se a harmonia da igualdade para todos.
Tal visão não resiste a uma análise. Há mecanismos de defesa para quem se sinta ofendido na honra pessoal. Afora a legislação eleitoral, existem as legislações penal e cível, que podem ser avocadas por quem se achar injustiçado. Ademais, vale lembrar que o objeto da arte humorística não é a infâmia ou a injúria, mas a graça, a brincadeira, a descontração, elementos que conduzem as audiências ao universo diversionista. Neste ponto, retorna-se à contradição: quanto mais a sociedade organizada avança em sua luta por igualdade de direitos, mais se expandem as restrições ao universo da locução. Se cada grupamento quiser impor um sistema próprio de regras para determinar o que entende por direitos, acabaremos por ter um arcabouço capenga em torno da defesa social. O escopo da igualdade e da cidadania não se forma a partir de restrições, numa banda, e ganhos corporativos, noutra. A defesa sobre "o que é politicamente correto" soçobra quando gera, em outra esfera, consequências incorretas. Numa sociedade democrática, o direito ao riso não pode ser contido pela defesa da mordaça.
Voltemos ao passado. Antonio Carlos Magalhães, governador da Bahia, perguntou um dia a Jânio: "E aquela história de que o senhor gostava de ver filmes de bangue-bangue nas madrugadas de Brasília para aliviar as tensões do governo, é verdade?" Jânio respondeu: "É verdade, ficava até as 3 da manhã. Papapapapa... para ter a sensação de estar matando parlamentares." Hoje, uma história assim seria impensável. Nem mesmo o idolatrado Lula, um contador de causos, teria coragem de fazer tal analogia.
P. S.: A decisão do ministro Carlos Ayres Britto, do STF, de suspender a proibição do humor na eleição merece aplausos. Aguardemos o exame do mérito do caso em plenário.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO