O Estado de S. Paulo - 23/08/2010
Autor e personagem de um vídeo que tomou conta da internet, em que é chamado de otário e sacana pelo governador Sérgio Cabral, além de ouvir do presidente Lula que tênis é esporte de burguesia, o estudante Leandro dos Santos, morador de um barraco na favela Nelson Mandela, no Rio de Janeiro, não tinha ideia da repercussão da gravação. O episódio foi reproduzido por Italo Nogueira, repórter do jornal Folha de São Paulo e pode ser conferido pelo amigo leitor http://www.youtube.com/watch?v=KOKS_apCwzA. O jovem, xingado por Cabral e ironizado por Lula, desnudou as duas caras dos homens públicos: o rosto amável e as palavras medidas diante das câmeras e o desprezo debochado na vida real.
Segundo Nogueira, o estudante abordou o governador e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro do ano passado, após a inauguração de obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em Manguinhos. Primeiro, o rapaz reclama da ausência de uma quadra de tênis no local, e Lula diz que isso é esporte da burguesia. O presidente então pergunta por que ele não nada. Ao ouvir que a piscina fica fechada, Lula se dirige a Cabral: O dia que a imprensa vier aí e vir isso fechado, o prejuízo político é infinitamente maior do que colocar dois guardas aí. O comentário de Lula é revelador. O que interessa não é o bem-estar dos pobres, mas o eventual arranhão na sua imagem.
Em seguida, Leandro reclama do barulho do Caveirão, o blindado da Polícia Militar, em sua rua. Cabral o interrompe e pergunta se lá não tem tráfico não. Quando o jovem diz que não, o governador rebate: Deixa de ser otário, está fazendo discurso de otário.
Otário, sacana e burguês. Três carimbadas no rosto de um jovem favelado que teve a coragem de exercer a cidadania e de questionar governantes carregados de arrogância e armados de ironia cruel, mas que diante dos holofotes da mídia se apresentam como paladinos da luta contra qualquer discriminação. Uma imagem grita mais que mil palavras. O vídeo está bombando na internet e causa irado constrangimento.
Nós, jornalistas, devemos refletir a respeito desse episódio. Ele revelou o que nossas pautas não costumam contar. Mostrou a face verdadeira, o rosto sem maquiagens, a alma desprovida do botox do marketing. E é exatamente isso que devemos fazer.
Dilma Rousseff, por exemplo, diz que vai fazer o trem-bala. Baita declaração. Mas é viável? Como vai contornar a muralha da Serra das Araras? E as infinitas desapropriações? Ninguém fala disso. O que fica é o efeito: vou fazer o trem-bala. Sou contra o aborto, mas considero o aborto um problema de saúde pública. Afinal, é favor ou é contra? Quer ampliar os casos previstos na legislação ou quer deixar como está? Sou contra a censura. Beleza. Então, como explicar sua assinatura no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)? Como explicar as sucessivas maquiagens nos seus planos de governo? Sou contra qualquer ditadura. Ótimo. Mas como explicar as declarações de voto de Hugo Chávez para a amiga Dilma? E o José Serra, é a favor ou contra a independência do Banco Central?
Nosso papel, embora com civilidade e respeito, não é registrar, mas questionar. Willian Bonner, âncora do Jornal Nacional, fez a sua parte com notável profissionalismo. O PT errou quando insultava Sarney, Collor e Renan Calheiros ou errou depois ao se aliar a eles? Antes o PT não tinha experiência, amadureceu no governo, respondeu Dilma. A candidata, sem a blindagem imediata do marketing, mostrou sua concepção de política: um jogo pragmático e sem qualquer tipo de baliza ética. Para ela, ser maduro é juntar-se ao que há de pior. Cobrada sobre o resultado fraco no crescimento econômico se comparado com outros emergentes, culpou a herança maldita do governo Fernando Henrique. Ainda não passou pela cabeça da candidata culpar Pedro Álvares Cabral pelo gargalo na infraestrutura. Mas chegaremos lá. O telespectador, sem contrabando opinativo, tira suas conclusões.
O jornalismo de qualidade, firme e independente, é rastreador da verdade. Não é nosso papel embalar candidatos, mas mostrar suas contradições. É preciso incomodar. Jornalismo cor-de-rosa não faz bem à democracia.