O GLOBO - 25/07/10
O livro é como a colher e a roda, uma invenção perfeita, como diz Umberto Eco? Ou ele vai acabar? A mesma aflição que ronda o jornalismo impresso assombra o mundo dos amantes do livro. A resposta é a mesma. O livro vive e sempre viverá. Ele não é o formato, mas o espírito que habita nele; é a forma de guardar conhecimento, histórias, emoções.
Há 500 anos ele tem tido mais ou menos o mesmo formato a que se chegou depois da revolução de Gutenberg.
Agora, o mundo está no umbral de uma nova dimensão. Como sempre, as revoluções afligem alguns, entusiasmam outros e produzem vaticínios fatais.
“O livro não morrerá” é o título da abertura do “Não contem com o fim do livro”, de Umberto Eco e JeanClaude Carrière, que acaba de ser lançado pela Record.
Comecei a ler na véspera do dia em que saiu a notícia de que as vendas dos livros eletrônicos ultrapassaram, pela primeira vez, os livros de capa dura vendidos pela gigante online Amazon.
Nos últimos anos temos sido sacudidos pelas previsões de fim de alguma coisa em comunicação e, como sempre, os formatos vão se acumulando, e novidades vão abrindo novas frentes de discussões.
A tecnologia inventa a cada dia o definitivo. E ele quase nada dura. Na tarefa de guardar, transmitir e reproduzir dados e imagens, o mundo viu, nos últimos anos, uma sucessão de invenções geniais que ficaram obsoletas numa rapidez inesperada. Nem falemos do pré-histórico fax.
Fiquemos no vídeo-cassete, CD, CD-ROM, DVD. Ou nos softwares que vão mudando na velocidade da luz transformando velhos arquivos e filmes em velharias ilegíveis.
O escritor e dramaturgo Carrière foi nomeado pelo ministro da Cultura da França, na época Jack Lang, para dirigir uma nova escola de cinema e televisão em 1985.
Um dos problemas que teve nos dez anos que exerceu o cargo foi que tecnologia usar para mostrar os filmes aos estudantes. “Lembrome do primeiro CD-ROM que vimos: era sobre o Egito.
Ficamos embasbacados, entusiasmados. Todo mundo curvava-se àquela inovação, que parecia sanar todas as dificuldades com que nós, profissionais da imagem e do arquivamento, nos deparávamos havia tempo. Ora, as fábricas americanas que fabricavam aquelas maravilhas estão fechadas já faz sete anos.” Conta que quando viu o DVD achou que tinha, afinal, o suporte durável, mas os novos discos menores surgiram. Um amigo dele, cineasta belga, tem 18 computadores em seus porões para consultar os trabalhos antigos que já não podem ser vistos nos novos.
Determinados leitores eletrônicos de livros e jornais mimetizam atos aos quais estamos habituados como o folhear páginas com o dedo. A isso se somam novas vantagens como a de poder ampliar o corpo da letra com um toque das mãos, ou encontrar o ponto que se quer num calhamaço com apenas a digitação da palavra-chave.
Umberto Eco diz que “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura.
Uma vez inventados, não podem ser aprimorados.
Você não pode fazer uma colher melhor do que uma colher”, para concluir: “Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é.” Para os amantes do livro como ele é atualmente, depois dos papiros e pergaminhos, é perturbador o cenário de que eles desapareçam e tenhamos que ler os clássicos em formatos que hoje nos cansam a vista.
Talvez. Mas é um tempo curioso esse. Um tempo em que o livro passou a ser personagem dele mesmo.
Em “A Sombra do Vento”, de Carlos Ruiz Zafón, (Objetiva), o menino Daniel é levado pelo pai, como numa espécie de ritual para saída da infância, ao Cemitério dos Livros Esquecidos. “Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu, e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele”, diz o pai. O resto da trama se passa em torno do livro escolhido por Daniel para ser guardado e protegido. No “Trem Noturno para Lisboa”, de Pascal Mercier (Record), o personagem Raimund Gregorius muda completamente a vida, que vivia de forma imutável, para seguir as trilhas de um livro e um determinado autor, “um ourives da palavra”. Na “Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco (Record), um negociador de livros raros perde a memória afetiva, mas mantém intactas as lembranças do que leu e aprendeu. Atrás de livros e revistas guardados na casa da infância ele tenta encontrar alguma pista que o faça lembrar de si mesmo. Essas são algumas obras recentes em que o livro, em si, está no centro de histórias de mistérios ou de reflexão filosófica, num curioso volteio em que ele começa a girar em torno de si mesmo.
O livro vai acabar? Ora se ele fosse ameaçado por uma nova invenção não teria provocado o medo de todos os tiranos, em tantas culturas, mesmo antes da forma moderna de impressão.
O jornalista Jean-Phillippe de Tonnac, coordenador do debate entre Eco e Carrière, fala do verdadeiro “bibliocausto” que a humanidade tem visto e revisto.
“Censura, ignorância, imbecilidade, inquisição, auto de fé, negligência, distração, incêndio” vitimaram livros.
Fica claro então que o livro não é um formato, por mais delicioso que ele seja.
É uma chama misteriosa. Na coluna “No tempo do livro”, João Ubaldo Ribeiro lembrou a emoção que sentia na infância quando corria para perto dos livros. “Quase febril, ansioso como se o mundo fosse acabar daí a pouco, eu nem sabia com quem ia encontrar e aonde viajaria numa nova manhã encantada.” Quem tem a ventura do prazer da leitura sabe que o formato é detalhe.
O livro permanecerá.