quinta-feira, maio 13, 2010

DEMÉTRIO MAGNOLI Ensinando o ódio

O Estado de S.Paulo - 13/05/10

"Uma certa miopia social pode ser mais produtiva politicamente do que
um olho perfeitamente são." A frase, do ex-diretor da Capes Renato
Janine Ribeiro, conclui uma comunicação acadêmica consagrada às
políticas de identidades - ou seja, no caso do Brasil, especialmente
às políticas de preferências raciais. O cerne do texto encontra-se na
ideia de que "uma estratégia política das diferenças (...) pode
sustentar uma tática política da desigualdade, num sentido fortemente
compensatório - isto é, de que para chegarmos à igualdade será preciso
passarmos pela desigualdade".

Renato Janine é um pensador íntegro, não um panfletário rancoroso. Seu
texto, pontilhado de dúvidas e perplexidade, é algo como uma renúncia
à utopia marxista organizada em torno da luta de classes. No lugar do
fracassado programa revolucionário, seria a hora de aceitar a "miopia"
mais "produtiva" das políticas diferencialistas, que descortina o
cenário de uma sociedade constituída por segmentos identitários:
afro-brasileiros, europeus étnicos, indígenas, quilombolas...

O marxismo, a ditadura do proletariado e o totalitarismo stalinista,
que não são idênticos uns aos outros, certamente formam galhos da
vasta árvore iluminista nascida à sombra do estandarte da igualdade.
Mas, ao contrário do que parece sugerir Renato Janine, a árvore tem
muitos galhos saudáveis. Fora da esfera soviética, as lutas sociais
romperam o círculo de ferro do liberalismo elitista. O voto feminino,
a educação e a saúde públicas, os sistemas de previdência social
atestam a "produtividade" de um credo assentado sobre o princípio da
igualdade política dos cidadãos. Por que motivo deve ser abandonada a
obra infinita, ainda tão precária entre nós? Como se justifica a sua
substituição por uma estratégia que fragmenta o povo em segmentos
circundados pelas muralhas das "identidades"?

De acordo com Renato Janine, a luta de classes tenderia à guerra de
extermínio, enquanto a "política das diferenças" se orienta pela meta
do "reconhecimento do outro". A primeira assertiva é desmentida por
cem anos de lutas trabalhistas nas democracias "burguesas". A segunda,
por genocídios colossais ou pequenos massacres cotidianos que, da
Alemanha nazista à Ruanda hutu e da Índia das castas à Nigéria das
etnias oficiais, formam um plantel de experiências históricas sobre a
dinâmica das políticas identitárias. As pessoas mudam de ideia, de
partido, de estrato de renda e de classe social, mas não podem mudar
de "raça" ou "etnia". Eis o motivo pelo qual as Constituições
democráticas rejeitam a classificação oficial dos cidadãos segundo o
critério do sangue.

"Nós tivemos de ensinar o povo a odiar os sulistas, a enxergá-los como
pessoas que expropriavam os seus direitos", explicou um líder dos
hauçás da Nigéria setentrional, referindo-se ao sistema de
preferências étnicas inscrito nas leis do país. A "estratégia política
das diferenças" é uma pedagogia do ódio destinada a construir
comunidades identitárias coesas. No Brasil, percorremos a etapa
inicial dessa trajetória pedagógica. Como em tantos outros lugares,
tenta-se ensinar o ódio primordialmente na escola. A missão, conduzida
pelo MEC, tem como alvos as crianças e os jovens das escolas públicas.

A palavra "revanche" encontrou sentido positivo na resolução do MEC,
de junho de 2004, que regulamenta as Diretrizes para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Nela o Brasil é descrito como um país
binacional no qual "convivem (...) de maneira tensa, a cultura e o
padrão estético negro e africano e um padrão estético e cultural
branco europeu". Neste país partido em dois, "não é fácil ser
descendente de seres humanos escravizados", mas também é difícil
"descobrir-se descendente dos escravizadores" e "temer, embora
veladamente, a revanche dos que, por cinco séculos, têm sido
desprezados e massacrados". Qual será a opinião de Renato Janine sobre
tais passagens, convertidas em ato legal por Tarso Genro e
referendadas por Fernando Haddad?

A pedagogia do ódio é também a da falsificação da História. A
resolução, que manda celebrar o 20 de novembro como Dia da Consciência
Negra, não traz palavra alguma sobre o movimento popular
abolicionista, definindo o 13 de maio como "o dia de denúncia das
repercussões das políticas de eliminação física e simbólica da
população afro-brasileira no pós-abolição". No dia de hoje, se os
professores seguirem as diretrizes do MEC, nenhum estudante ouvirá os
nomes de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Antônio Bento e Luís Gama
ou conhecerá os feitos de incontáveis anônimos, de todas as cores e
classes sociais, que derrotaram a escravidão e derrubaram os pilares
do Império. Por outro lado, serão apresentados a nada menos que um
genocídio racial, evento que clamaria pela "revanche".

As palavras da resolução têm consequências cotidianas. Nas escolas
públicas, o MEC distribui livros didáticos dedicados a dividir os
jovens estudantes em "brancos" ("descendentes dos escravizadores") e
"negros" ("os que, por cinco séculos, têm sido desprezados e
massacrados"), enquanto suas comissões de seleção aplicam as diretivas
oficiais para excluir as obras que não retratam o Brasil como o país
binacional inventado por "uma certa miopia social". Uma gosma de
doutrinação racial escorre para dentro das salas de aula,
emporcalhando todo o sistema de ensino.

As pessoas aprendem a odiar. O ódio racial é um substituto míope, mas
fácil, para a complexa, nuançada reflexão política sobre nossas ruínas
sociais. Renato Janine não deixaria de comparecer ao simpósio
promovido pela Capes e pela British Academy no qual fez o elogio da
miopia. Estará ele presente quando jovens colegas de escolas públicas
atirarem pedras uns nos outros porque os tons da pele separam seus
destinos no umbral da universidade?

SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.