O ESTADO DE S.PAULO - 24/04/10
O que o presidente Lula e sua comitiva não encontraram, na comemoração do aniversário da demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, foi a divisão que lá havia, há um ano, entre os índios favoráveis à demarcação contínua e à expulsão dos brancos produtores de arroz ou pecuaristas daquelas terras e os que se opunham à expulsão dos arrozeiros, porque dependiam deles para sua sobrevivência. Desta feita, o que Lula encontrou foi uma completa união: tanto os que eram favoráveis como os que eram contra a exclusividade da ocupação indígena daquelas terras se tornaram solidariamente contra a demarcação tal como foi feita.
É que os dois grupos sentiram fortemente os efeitos da queda de produção e da falta de trabalho. Seus meios de sobrevivência escassearam e, de lá para cá, os chefes de família têm tido de se contentar com o que suas mulheres recebem do Bolsa-Família e do programa de cestas básicas.
O pretendido entusiasmo, que se esperava dos grupos de índios convocados e organizados pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) - entidade que comandara mobilizações em favor da demarcação contínua - para recepcionar o presidente da República em Maturuca, cantar o Hino Nacional em dialeto macuxi e exibir outras formas de vitoriosa alegria, ficou obnubilado pela frustração e tristeza dos que haviam perdido o trabalho de uma vida inteira ou até de mais de uma geração.
Os fazendeiros obrigados a deixar suas terras consideravam os festejos programados pelo Planalto uma "verdadeira afronta". O Estado de segunda-feira mostrou, por exemplo, o caso do pecuarista Joaquim Correa de Melo, de 87 anos, um dos que em 22 de março de 2009 foram obrigados, por decisão do STF, a "deixar para trás uma vida inteira". Sua família residia e produzia na Fazenda Caracaramã, à beira do Rio Maú, no município de Normandia, desde 1816.
O governador de Roraima, José Anchieta Junior (PSDB), apesar de convidado pelo Planalto, não compareceu à festa, já que era inteiramente contrário à demarcação contínua e à expulsão dos fazendeiros, responsáveis por significativa produção agropecuária. Foram muitos os protestos, expressos em faixas e outdoors. E as descontraídas brincadeiras do presidente Lula - que colocou um cocar na cabeça e ameaçou usar do arco e flecha contra fotógrafos - não empolgaram ninguém.
Não empolgaram porque não são motivo de festa a paralisação da economia da região, o fato de as pessoas terem de sobreviver à custa de programas sociais e a sonegação, por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai), de assistência aos que se opuseram à demarcação e à expulsão dos arrozeiros - conforme a queixa dos índios da Vila Ticoça, onde vivem 60 famílias.
A despeito de todas as evidências dos problemas criados pela demarcação contínua e das manifestações contrárias àquela comemoração, o presidente Lula não se deu por achado. "Era como se nós fôssemos o demônio, porque diziam que a gente iria tirar a terra que Roraima precisava para produzir", disse o presidente. Acrescentou que, apesar de considerar a demarcação "um marco histórico", evitou ir antes à região por causa da divergência que se estabeleceu no Estado de Roraima.
Nisso o presidente acertou: agora já não há divergência, porque todos - com a exceção do Conselho Indigenista e da Funai - ficaram contra a demarcação contínua e a expulsão dos fazendeiros.
O presidente Lula, no entanto, vê apenas o que lhe interessa. Se, por um lado, considerou que todos os índios estão muito felizes com a demarcação da Raposa-Serra do Sol, por outro, não deixou de perceber que as instalações de luz e banheiro que encontrou eram provisórias e se destinavam ao uso da comitiva de autoridades.
E não resistiu à tirada demagógica: "Na hora em que eu virar as costas, vocês vão ficar no escuro outra vez, como se eu fosse um vaga-lume", disse ele. E prometeu que o ministro de Minas e Energia voltará a Maturuca levando luz à localidade.
Teve a prudência de não dizer quando.