sexta-feira, abril 30, 2010

Os 'hermanos' se afagam EDITORIAL O Estado de S.Paulo

 30/04/10

Desde 2007, os presidentes do Brasil e da Venezuela têm se reunido a cada três meses. Desta vez, na quarta-feira, em Brasília, reuniram-se para assinar 21 tratados e acordos bilaterais nas mais variadas áreas e para discutir a agenda da próxima reunião da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), na semana que vem, em Buenos Aires. Dito assim, pode parecer que Lula da Silva e Hugo Chávez não tinham mãos a medir para dar conta de tão substanciosa agenda, decisiva, quem sabe, para a projeção do País no Hemisfério e para que a Venezuela "não fique dependente apenas do petróleo que produz, mas que também possa desenvolver-se em outros campos da economia", como declarou generosamente o brasileiro.

Deve contribuir para isso, é o caso de deduzir, a instalação de uma fábrica de latas para alimentos no vizinho país, objeto de um dos documentos a merecer o autógrafo dos dois assoberbados chefes de Estado hermanos. A bem da verdade, nem todos os acordos firmados por eles têm essa escassa envergadura. Mas a obra, no conjunto, foi claramente concebida para deixar a impressão de que as relações entre Brasília e Caracas, além de robustas, são exemplares em matéria de integração regional ? descontados o fato de a Venezuela atrasar pagamentos às empresas brasileiras de porte médio incentivadas a fazer negócios ali e o sufoco que é depender da burocracia bolivariana. Chávez, por sinal, já trocou duas vezes o ministro que cuida das negociações com o Brasil.

Se Lula e seu exuberante hóspede trataram em privado desses desconfortos não se sabe. Em público, aos afagos, referiram-se ao seu esporte preferido, a ponto de, em dado momento, Chávez troçar com a logorreia do anfitrião. "Tu hablas mucho", fingiu criticar, numa versão fraternal do célebre pito que lhe passou certa vez o rei da Espanha, Juan Carlos: "Por que no te callas?" Vai ver, o mais falastrão dos governantes mundiais, também nisso herdeiro do aposentado ditador cubano Fidel Castro, está passando por uma metamorfose desde que resolveu aderir a mais essa engenhoca do Império, como diria, que é o microblog Twitter, onde cada mensagem não pode ultrapassar 140 sinais.

Não escapa a ninguém que as manifestações da dupla são um convite à ironia, quando não ao desalento. Surpreendido pelos jornalistas brasileiros com a pergunta que os seus colegas venezuelanos pensariam duas vezes antes de não fazer ? quando deixará o governo? ?, um Chávez visivelmente agastado com tamanho delito de lesa-majestade traiu-se ao lembrar que o monarca espanhol tem um cargo "vitalício". Disse também que o seu primeiro-ministro pode se reeleger indefinidamente (o que é apenas normal nos sistemas parlamentaristas), alheio, como é óbvio, às ofuscantes diferenças entre a democracia espanhola, para ficar no seu exemplo, e a ditadura em avançado estágio de construção na Venezuela ao longo dos 11 anos de chavismo.

Ao fim e ao cabo, o caudilho desistiu do lero-lero e afirmou que não sabe quando se irá e que não tem sucessor à vista. Pouco antes, ao falar da expansão da democracia na América Latina ? personificada, para ele, pelo líder boliviano Evo Morales, por ser indígena ?, Lula evocou o apoio que dera a Chávez, por ocasião do fracassado golpe de Estado contra ele, em 2002. No seu costumeiro estilo leve, livre e solto, inventou que, então, só não foi crucificado "porque faltava madeira para fazer cruz". Naturalmente, a denúncia do golpismo passou ao largo da quartelada comandada em 1992 pelo então coronel Hugo Chávez contra o presidente Carlos Andrés Pérez.

Em outra passagem, o brasileiro repetiu o que dissera na segunda-feira aos dirigentes dos 14 países-membros da Comunidade do Caribe (Caricom), reunidos em Brasília: continuará na política depois de 2010. Desta vez, acrescentou que vai correr mundo para "emancipar a África", seja lá o que isso queira dizer. O seu senso de onipotência deve ter chegado ao paroxismo ontem, quando soube que a revista americana Time o colocou na sua lista dos 100 líderes mais influentes do globo, selecionados entre políticos, empresários, artistas e pensadores.