Editorial ESTADO DE S. PAULO
Bastaram uns poucos dias do que à legislação eleitoral brasileira apraz qualificar como "pré-campanha" para que a "pré-candidata" Dilma Rousseff deixasse claro como pretende tratar o seu adversário José Serra. Por razões de formação, temperamento e interesse, ela precisa fazer dele um inimigo inconfundivelmente identificado, contra quem, em consequência, possa mover uma guerra sem quartel. As reações agressivas da petista aos primeiros comentários do tucano sobre o governo Lula vêm de uma concepção de combate político fundada na ideia de que os argumentos do outro, não podendo ser ignorados, devem ser convertidos em armas para silenciá-lo e, no limite, aniquilá-lo.
O rombudo estilo pessoal da ex-ministra combina com a tática de terra arrasada que vem adotando. E essa é inseparável da estratégia ditada por Lula de confinar a competição pelo Planalto a um plebiscito ou, como se diz em dialeto petista, a um enfrentamento entre "nós e eles". O Serra de verdade se apresenta como candidato do que se pode chamar "continuança" - um híbrido da continuidade com a mudança. Por isso fala em "fazer mais", não em "fazer o oposto". O mote não deriva apenas da avaliação realista de que investir contra um presidente que flutua nas nuvens da popularidade é suicídio político. Resulta também da convicção de que o Brasil avançou em muitos aspectos por ter Lula sabido usar e expandir a "herança maldita" que lhe tocou.
Mas este Serra - tão à vontade ao elogiar o Bolsa-Família quanto ao criticar o PAC como "uma lista de obras", a maioria das quais "não foi feita" - não se encaixa no papel que o outro lado gostaria que ele desempenhasse. É muito equilíbrio e maturidade para o populismo plebiscitário de Lula, e desconcertante demais para o raciocínio binário da sua escolhida. Eleitoralmente pode ser um perigo: quando, além disso, o ex-governador ainda contrapuser ao "nós e eles" do presidente uma espécie de "eu e ela", jogando a cartada de sua experiência contra o noviciado da rival, isso decerto afetará a transposição de votos do patrono para a apadrinhada.
Se é esperado que uma parcela do eleitorado votará em Dilma apenas por ela ser "a mulher do Lula", outra poderá preferir Serra por ver nele o continuador mais capaz da obra do presidente. Eis por que não é de excluir que a mão pesada da candidata se volte contra si mesma. Não está escrito nas estrelas que o povo responderá amém sempre que ela estigmatizar o oponente como "lobo em pele de cordeiro", cercado de "exterminadores do futuro", para neutralizar o seu reconhecimento do que ele entende ser as conquistas da era Lula. Ou quando o chamar, depreciativamente, "biruta de aeroporto", por ele não fazer o que o PT necessita que faça: atacar em bloco o desempenho do primeiro-companheiro, em vez de separar o joio do trigo.
Já se disse que Serra perdeu para Lula em 2002 porque o tucano representava a continuidade quando o povo queria a mudança. Agora, quando povo quer a continuidade, Lula pretende a todo custo pespegar em Serra a falsa imagem do carbonário que ele próprio foi outrora: contra "tudo isso que está aí". O problema petista é fazer o rótulo colar. (O de Serra, vender a sua continuança.) É um engano preconceituoso achar que a maioria dos eleitores quer ver sangue na campanha. Quer, isso sim, saber quem é quem, em quem pode confiar mais e quem está mais preparado para fazer o que todos prometem - porque não há, no Brasil de hoje, roteiros antagônicos dos caminhos para o desenvolvimento econômico e o progresso social.
Os políticos que entendem de voto sabem que ataques como os que Dilma tem desferido contra Serra podem ricochetear na candidata que irá às urnas pela primeira vez na vida. Não terá sido por outro motivo que Michel Temer, seu provável companheiro de chapa, apressou-se a defender "um grande debate em torno dos problemas do País, não no nível das questões pessoais". Ora, o jogo bruto de Dilma é precisamente interditar esse debate, apelando para estocadas pessoais e a invencionice de que Serra é o anti-Lula.