FOLHA DE S. PAULO /ILUSTRADA
A tragédia do morro do Bumba é o desfecho da política que se alimenta do desamparo
POUCO DEPOIS de assumir o governo do recém-criado Estado da Guanabara, Carlos Lacerda decidiu retirar do morro da Babilônia -sob o qual está o túnel Novo, que liga Botafogo a Copacabana- uma pequena favela, que ali se formara. Já antes construíra um conjunto residencial em Bangu, para onde os moradores da favela foram transferidos. Os barracos desocupados foram demolidos e os restos, queimados, para sanear o local.
Lacerda foi então acusado pela oposição -que incluía getulistas e as esquerdas em geral- de odiar os pobres e matar mendigos. É que, na mesma ocasião, mandara para abrigos os moradores de ruas. Hoje, cabe perguntar: o que seria daquela entrada de Copacabana (avenida Princesa Isabel) se ali em cima do túnel houvesse hoje uma favela, que estaria dez vezes maior e dominada por traficantes armados?
A campanha contra o governador teve tal impacto que ele desistiu do seu projeto que era retirar outras favelas da zona sul da cidade. Se, ao contrário, seu plano tivesse obtido apoio, os graves problemas que enfrentamos hoje, tanto no plano da criminalidade quanto da qualidade de vida dos moradores, talvez não existissem.
O que aconteceu então? O governador teve que deixar de lado o que era certo fazer porque o "povo" o obrigou? Mas, ele, o povo, foi o principal prejudicado, já que políticos oportunistas, fazendo-se passar por amigos dos favelados, impediram que se iniciasse a transferência deles para conjuntos residenciais, com condições de vida mais dignas e seguras.
Lembro-me, agora, a propósito, do que me contou um político, que foi visitar o então governador Leonel Brizola, em seu apartamento na avenida Atlântica. Observara, no percurso, que a avenida estava repleta de mendigos e disse isso a Brizola, que respondeu:
"Deixo-os aí de propósito para mostrar o que os ricos fazem com os pobres neste país". Parece o Lula falando, não?
Pois esse mesmo Brizola, durante seus dois governos no Rio de Janeiro, impediu que a polícia entrasse nas favelas para reprimir o tráfico de drogas e, graças a isso, os traficantes puderam transformá-las em "santuários" fortemente armados.
Paralelamente a isso, tanto Brizola como os que o sucederam, juntamente com os prefeitos da cidade, deixaram que as favelas crescessem e se alastrassem pelas encostas dos morros.
Quando a imprensa, alertada por moradores, mostrava novas invasões avançando sobre o que ainda restava de mata por ali, então, aquelas autoridades fingiam tomar providências, mas de modo a não entrar em conflito com os líderes da comunidade, seus cabos eleitorais.
E assim as favelas vieram crescendo, como uma ameaça à segurança dos que nela vivem e dos que moram nos bairros próximos.
Esses fatos são a expressão de um tipo de política que se faz no Rio de Janeiro, mas também no país inteiro, e em todos os níveis: municipal, estadual e federal. É a política populista, que consiste em se fazer passar por protetor dos pobres para, de fato, enganá-los.
A tragédia do morro do Bumba, em Niterói, é apenas o desfecho trágico dessa política safada, que se alimenta do desamparo material e da ingenuidade dos menos favorecidos. Ali havia, antes, um lixão que foi desativado em 1986. De lá para cá, em cima daquele terreno instável, composto de lixo e gás metano, as pessoas foram erguendo suas casas, sem que nenhuma autoridade tomasse qualquer providência para impedir. Pelo contrário, atendendo a interesses eleitorais, introduziram melhorias na área e passaram a cobrar dos moradores pela luz, pela água e até taxa de IPTU. Ou seja, legalizaram o lixão.
Enquanto isso, debaixo das casas, sob os pés dos moradores desavisados, aquela massa inconsistente de lixo e chorume produzia gás e preparava a tragédia futura. Os moradores, claro, o ignoravam, mas não os órgãos da prefeitura, que existem para cuidar dessas questões. Quanto ao prefeito e seu grupo, tudo o que lhe importava era manter o curral eleitoral. Sabe-se agora que, no Rio, há 18 favelas plantadas sobre lixões.
Essa tragédia de Niterói é, portanto, o resultado previsível de um tipo de política que consiste em manipular as necessidades da gente mais desvalida para chegar ao poder e se manter nele. A essa mesma categoria pertencem os programas assistenciais -que deveriam ser emergenciais, mas se tornam permanentes-, condenando a uma espécie de mendicância as famílias que deles se servem. Elas não se dão conta do chão instável que pisam, não percebem o futuro sem futuro que as espera.