O Globo - 19/03/2010
Passadas apenas 24 horas da divulgação de uma cartilha especialmente permissiva do advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, sobre a participação de autoridades na campanha presidencial, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) veio confundir mais ainda as coisas com duas decisões distintas sobre o tema. O ministro Joelson Dias multou o presidente Lula por ter feito campanha antecipada da candidatura oficial da ministra Dilma Rousseff à sua sucessão, numa inauguração no Rio.
No mesmo dia, o plenário do TSE rejeitou outro pedido da oposição, desta vez relativo a uma inauguração em Minas. A votação a favor do governo foi apertada — 4 a 3 —, o que mostra que o Tribunal está tendo dificuldades para traçar uma linha entre o permitido e o proibido nas campanhas eleitorais, especialmente quando se trata de um presidente com a popularidade de Lula, que não se contém diante de limitações legais, cujo alcance luta para ampliar, e está disposto a tudo para eleger sua sucessora.
O valor da multa, R$ 5 mil, é irrisório, mas o que simboliza pode ser fundamental para recolocar uma perspectiva republicana à campanha deste ano, que está se desenrolando dentro critérios absolutamente inadequados ao objetivo declarado da legislação eleitoral de equilibrar as condições da disputa, impedindo que o peso da máquina pública favoreça um dos contendores.
A primeira decisão do TSE que coíbe o abuso do poder político na campanha presidencial foi dada pelo ministro-auxiliar Joelson Dias. O ministro concordou que se caracterizou campanha o presidente Lula ter interagido com a plateia num evento realizado em 29 de maio de 2009, no Rio de Janeiro, na inauguração de um complexo esportivo construído com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Com os gritos de apoio à ministra-chefe da Casa Civil, Lula, embora ressaltando, num tom entre o irônico e o debochado, que não poderia falar o nome que gritavam para não ser acusado de estar antecipando a campanha, afirmou que esperava que o ditado que diz que "a voz do povo é a voz de Deus" se concretizasse.
Estão ficando comuns nas manifestações petistas durante as inaugurações de obras os gritos de "Brasil, urgente, Dilma presidente".
Mesmo que nem o presidente Lula nem a ministra Dilma digam algo, estará explícito o caráter político da reunião, embora a legislação eleitoral não possa impedir essas manifestações.
Mas quando o presidente interage com o público, de acordo com o ministro Joelson Dias, está caracterizada a antecipação.
São aspectos técnicos de um assunto político, que será agravado daqui por diante quando os candidatos terão que deixar os cargos públicos que exercem para disputar eleições.
O espírito dessa exigência legal, dessa obrigatoriedade de deixar os cargos públicos que os candidatos porventura exerçam, com a exceção dos chefes dos executivos federal, estadual e municipal, é justamente impedir que o abuso do poder interfira no resultado das eleições.
No outro julgamento, o de Minas Gerais, o presidente do TSE, ministro Carlos Ayres Britto, acabou sendo vencido, mas proferiu um voto histórico ao afirmar que "governantes costumam confundir projeto de governo com projeto de poder.(...) O mandato venceu, mas o governante tenta a continuidade, fazendo o sucessor (...)".
Foi a senadora Marina Silva, candidata do Partido Verde à Presidência da República, quem primeiro identificou no empenho do presidente Lula para eleger Dilma uma tentativa de continuar no poder, mesmo indiretamente.
O voto de Ayres Britto tocou na ferida e foi acompanhado por outros dois juízes, fazendo com que o julgamento ficasse empatado em 3 a 3.
Mas ontem o ministro Marcelo Ribeiro desempatou em favor do governo, alegando que uma campanha subliminar não é clara e não pode ser confirmada.
O ministro parece que vive em outro planeta, pois chegou a dizer que a candidatura da ministra Dilma Rousseff à Presidência da República não era do conhecimento geral na ocasião da inauguração no interior de Minas.
A desinformação de uns tantos, mesmo que fossem a maioria, não pode ser alegada como prova de que não se pode confirmar que estava sendo feita uma campanha eleitoral antecipada.
Se o presidente é eventualmente um político mais esperto que os outros e sabe usar de subterfúgios para burlar a lei, caberia aos juízes contê-lo dentro das normas legais.
Nesse sentido, a cartilha da AGU ensinando às autoridades as brechas para superar a legislação é um desserviço à democracia, pois faz uma interpretação excessivamente flexível das exigências legais, como se tudo fosse permitido.
Afirmar que a ministra Dilma Rousseff poderá frequentar os palanques que o presidente Lula montar para inaugurações de obras entre abril e junho, antes das convenções que oficialmente vão declará-la candidata, é legitimar uma farsa.
A simples presença da candidata oficial nas inaugurações, mesmo que ela fique feito um dois de paus no palanque sem abrir a boca, configuraria uma quebra do espírito da legislação eleitoral.
Além disso, o advogado-geral da União teria a obrigação de alertar que o presidente Lula e seus ministros estão proibidos de até mesmo sugerir que a candidata Dilma Rousseff, que a esta altura estará recebendo salários do PT, é a continuidade do projeto do presidente Lula.
A legislação eleitoral é muito frouxa e abre brechas para que líderes políticos ousados como Lula testem seus limites permanentemente.
O Tribunal Superior Eleitoral, pelo visto, não tem uma visão coesa sobre o que é permitido e o que é proibido, e essa indecisão poderá causar sérios problemas institucionais durante a campanha presidencial.