O ESTADO DE SÃO PAULO - 17/02/10
Antes de sair do Ministério da Justiça, o petista Tarso Genro fez uma autocrítica involuntária e comemorou um feito irrelevante. Ao reconhecer que a impunidade ainda campeia no Brasil e não é um privilégio de classe social, fez uma confissão de erro, culpa e fiasco. Pois no Estado Democrático de Direito, ao qual ele serviu no primeiro escalão do governo de seu correligionário Luiz Inácio Lula da Silva, o prelúdio da punição terá de ser uma investigação policial bem feita e imparcial. Festejou também a ação positiva de ter posto fim a certa vocação para o espetáculo de seus ex-subordinados no Departamento de Polícia Federal. Os fatos que confirmam sua confissão, contudo, conspiram contra a comemoração: o eufórico exibicionismo midiático dos agentes federais nunca foi recomendável, mas não está entre os defeitos fundamentais da corporação. O pior de todos estes é a politização.
E só para o dr. Genro ficar sabendo, antes de mergulhar na disputa pelo voto dos gaúchos, é bom alertar que uma coisa tem tudo a ver com a outra. Não que seja dele o pecado original - convém reconhecer desde já. Na verdade, a politização - como sua vertente mais nociva, a partidarização - é um mal que assola a Polícia Federal (PF) desde antes da ascensão dos petistas ao poder. Quando Lula tomou posse na Presidência, a instituição já se dividia em pelo menos três grupos: um ligado ao delegado e hoje senador Romeu Tuma (PTB-SP), que a dirigiu, outro de militantes petistas e uma minoria com conexões com o tucanato emplumado. A gestão de Márcio Thomaz Bastos no Ministério da Justiça ampliou a divisão. Tarso Genro pode até se jactar de não ter criado mais uma dissidência dos petistas na PF, mas também não se pode dizer que ele tenha feito algo de notável para acabar com a divisão e unificar seu comando. Genro celebra corretamente a maior discrição das operações, como ficou claro na prisão do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, na semana passada. Mas não evitou que a falta de comando levasse a episódios absurdos como o uso de arapongas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) pelo delegado Protógenes Queiroz.
Fato é que a politização do aparelho policial não é a única evidência dessa doença infantil de nossa democracia, o "Estado policial", ao qual se referiu o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, em pronunciamento feito à mesma época da despedida do ex-ministro da Justiça. O Ministério Público (MP), que praticamente emergiu como um Poder na Constituição de 1988, funcionou ao longo dos dois governos de Fernando Henrique como uma garra avançada do Partido dos Trabalhadores (PT) no sistema judicial brasileiro. Os procuradores federais Guilherme Schelb e, principalmente, Luiz Francisco de Souza, com toda a justiça cognominado Torquemada, o terrível inquisidor espanhol, agiram de forma tão parcial e partidária no exercício de suas funções que foram punidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, a pedido de Eduardo Jorge Caldas, ex-secretário de FHC. O ostracismo desses procuradores no governo petista é a evidência mais óbvia de que não estavam a serviço do público, mas de seu partido, o PT.
O triângulo se fecha com hipotenusa do uso da sentença como arma ideológica por alguns juízes, não um ou outro destacados no noticiário, mas espalhados pelo Brasil inteiro, como era a praga da saúva do tempo do Jeca Tatu. Esta terceira ponta é a mais perniciosa de todas para o funcionamento integral da democracia no Brasil. A prova mais cabal de que estamos submetidos ao risco de um "Estado policial" não é o emprego ideologicamente seletivo das algemas nos pulsos de banqueiros, empreiteiros e outros membros da elite brasileira. Algemar presos é da rotina policial. Foi, sim, a autorização absurdamente descontrolada e leviana por juízes de primeira instância da quebra de sigilo telefônico de quaisquer cidadãos arrolados como suspeitos em operações policiais. A interrupção da violação sistemática e indiscriminada de um dos atos mais íntimos do cidadão, o telefonema, e a intervenção de Mendes para pôr fim à farra das "prisões temporárias", que na prática permitem prender para investigar, devem ser as mais brilhantes atividades a constar da biografia dele.
Será ainda justo atribuir-lhe outra garantia de que nossa incipiente democracia não será trocada de súbito pelo "Estado policial": a interrupção do ciclo estabelecido na Operação Satiagraha por delegado, juiz e promotor para submeter a Justiça aos ditames do preceito ideológico. Ao incorporar, em sua despedida do Ministério, aos feitos de sua gestão a caça aos afortunados, como se ela significasse a redenção (pela inversão) da Justiça, acusada secularmente de só perseguir pretos, pobres e prostitutas, o ex-ministro fez o elogio do vezo político, que não deveria contaminar as decisões judiciais: ninguém deve ser condenado pelo "crime" de possuir, da mesma forma que ninguém pode ser prejudicado pela desvantagem de nada ter. A parcialidade da partidarização da polícia, do MP e da Justiça não favorece o desvalido, mas o apaniguado. E a PF do dr. Genro passará à História por ter sido implacável com os abonados, mas complacente com os companheiros.
Exemplos descarados desta afirmação são dados pelo gozo de plena liberdade de Waldomiro Diniz, réu confesso impune, e pela Operação Caixa Preta, que acusou de superfaturamento de obras em aeroportos um executivo da gestão Lula, Carlos Wilson, nove meses após sua morte. E o fez num relatório final de investigação em que o vernáculo foi atropelado pela deselegância do estilo e, o que é pior, pelo excesso de indícios e suposições sem provas. É por isso que a confissão do dr. Genro desautoriza sua celebração: o arbítrio restritivo balança o berço da impunidade irrestrita.