FOLHA DE S PAULO
A curiosidade de Da Vinci não tinha limites, assim como sua audácia e sua inventividade
LEONARDO DA Vinci, artista genial e inventor visionário de armas e máquinas de guerra, atravessou os séculos envolto em admiração e mistério, em parte por sua genialidade e em parte por suas idiossincrasias. A última das lendas surgidas em torno dele é a recentíssima hipótese de que a sua obra-prima, a "Mona Lisa", seja um autorretrato.
Tudo é possível, se se leva em conta que, no final do século 15, em Florença, quando a Inquisição queimava na fogueira os suspeitos de terem parte com o Diabo, ele, Da Vinci, dissecava cadáveres para descobrir como funcionava o organismo humano. Seccionava parte por parte, órgão por órgão e, quando começavam a apodrecer, metia-os em sacos e, na calada da noite, os jogava no rio que cortava a cidade. Quase ninguém sabia, é claro, mas com o tempo os fatos se transformaram em histórias fantásticas e suspeitas maldosas.
Se sua curiosidade não tinha limites, tampouco os tinham sua audácia experimental e sua inventividade: intuiu novas possibilidades na arte de pintar, que os recursos técnicos da época tornavam inviáveis. Por isso, decidiu inovar na execução do afresco "Batalha de Anghiari", pintado no Palazzo Vecchio, de Florença, que se apagou inteiramente. Nem por isso foi menos audacioso ao pintar "A Ceia", no refeitório de Santa Maria della Grazie, em Milão, cujas cores começaram a sumir antes que terminasse de pintá-la. Essa obra intrigava a todos pela gesticulação enigmática dos personagens representados.
Como se não bastasse, o best-seller "Código Da Vinci" atribui ao pintor secretas intenções, como a de pôr no rosto de são João Batista, que ali aparece ao lado de Jesus, feições femininas que seriam as de Maria Madalena, dada como mulher do Cristo, fato que a igreja teria ocultado durante séculos.
Não obstante todo o mistério que envolve a figura de Da Vinci, até certo ponto inventado por outros, mas também estimulado por ele, a nova lenda acerca da "Mona Lisa" não parece convincente, em face das informações pertinentes acerca do quadro e de Lisa, a retratada, que tinha 15 anos ao casar-se com Bartolomeo del Giocondo, viúvo, 19 anos mais velho que ela. Foi quando lhe morreu a filhinha de quatro anos que o marido, para consolá-la, pediu a Da Vinci que lhe fizesse o retrato. Este, que se negara a retratar os nobres da época, não apenas aceitou o convite como fez desse retrato uma obra-prima. Só que teria dado ao casal uma cópia do quadro, não o original, que guardou consigo.
Pois bem, apesar desses dados históricos, uma equipe do Comitê Nacional Italiano para a Herança Cultural pediu a autoridades francesas para abrir o túmulo do artista, em Amboise, na França. Segundo o antropólogo Giorgio Gruppioni, pretendem encontrar o crânio de Da Vinci para reconstituir-lhe o rosto e compará-lo ao de "Mona Lisa". O difícil, quase impossível, a meu ver, é encontrar o crânio do pintor.
Pelo seguinte. Da Vinci morreu na França, para onde se mudara a convite de rei Francisco 1º, levando consigo algumas obras-primas, inclusive a "Mona Lisa". Foi sepultado a 12 de agosto de 1519, no claustro da igreja Saint-Florentin d'Amboise, demolida em 1802, por ordem de um tal Roger Ducoc, nomeado senador por Napoleão. Mandou derreter os esquifes de chumbo, para vender o metal, e jogar fora as ossadas. Acredita-se que o jardineiro de Ducoc, por iniciativa própria, tenha sepultado os restos de Leonardo num canto do castelo e que, em 1874, foram transferidos para uma pequena capela do castelo de Amboise. Mas nenhuma certeza há de que os ossos ali sepultados sejam dele. O exame de DNA acabará com a dúvida.
Tal iniciativa, partindo de um órgão oficial, causa surpresa e só se explica pela necessidade de alimentar a lenda que envolve esse homem incomum. Todos conhecem um suposto autorretrato de Da Vinci, que se encontra a três por dois estampado em livros e revistas de arte, e que não é, seguramente, um autorretrato dele. Basta compará-lo com o "Retrato de Leonardo", pintado em 1510, por Francesco Melzi, que, ao contrário daquele, mostra-nos um homem de feições sensíveis, olhar inteligente e iluminado. Nada tem que nos lembre a "Mona Lisa", muito menos o sorriso.
Há ainda, no afresco "Escola de Atenas", de Rafael, a figura de Platão, que teria as feições de Da Vinci. Francesco, seu discípulo, viveu com ele desde os 15 anos e herdou todas as obras científicas e artísticas do mestre, inclusive a "Mona Lisa", que cedeu a Francisco 1º. Dizem que era seu amante. Não há por que duvidar do retrato pintado por ele.