O ESTADO DE S. PAULO
A Constituição brasileira estabelece no seu artigo 2º: "São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário." Isso está escrito também, quase com as mesmas palavras, nas Constituições dos países civilizados. Mas o PT - lembremos - não assinou a Constituição de 1988. Queria uma outra Constituição. Por isso o Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3) assinado pelo presidente Lula, sob inspiração do partido, não só reforma a Constituição, como cria um superpoder: o Poder da Ágora, ou seja, das "comissões de representantes da sociedade civil", sobrepostas ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário, que nada poderão decidir sem a anuência das tais comissões.
A maioria da imprensa errou o foco. Pensou que o problema, no PNDH-3, era o das atribuições da Comissão da Verdade e da eventual mudança na Lei da Anistia. Por isso Lula achou que, mudando palavras, a "trolha passa", como se diz nas redações. Pior, pensou-se que era uma briga de vaidades - Vanucchi x Jobim - ou de interesses - CNA x MST. A oposição, como de hábito, não disse nada.
Mas está claro que a tarefa de "mudar tudo isso que aí está" foi delegada à sucessora de Lula. Este, no início dos seus mandatos, optou por um recuo tático: refugiou-se na política econômica recomendada pelo Consenso de Washington, a conselho do seu ministro Palocci e, depois, do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.
Mas não tem nada não. A diretriz ficou engatilhada para momento mais propício, que aparece à medida que Lula e seu governo ascendem ao ápice da popularidade, da força política e da possibilidade de elegerem Dilma - com a perspectiva, ainda, do retorno de Lula.
Como aconteceu com o PSDB no primeiro mandato de FHC - que pensou que se eternizaria no poder -, Lula, o PT e o grupo que comanda o partido planejam para as próximas décadas. O próprio Lula já não tem tempo, neste mandato, de executar o grande projeto de mudança. Estará empenhado na tarefa prioritária de eleger sua candidata, exatamente para que a outra tarefa, a de mudar tudo o que aí está, possa ser cumprida.
Para facilitar, era necessário um arcabouço político-jurídico-institucional que favorecesse romper com as estruturas conservadoras. Lula viu no início dos seus mandatos que a coisa era muito difícil, pois todo o quadro institucional era, e ainda é, pequeno-burguês, e fora reforçado pelo PSDB com sua estratégia de apenas aperfeiçoar a governança.
A grande ruptura está delineada pelo Decreto do PNDH-3. Não é uma proposta de mudanças para serem debatidas pela Nação. É um decreto, que tem força de lei, mesmo que várias disposições requeiram a aprovação de leis. Mas qualquer juiz de direito pode invocar o decreto para embasar suas decisões, a título de princípio estabelecido.
Não se trata, também, da defesa e do enforcement dos direitos humanos já consagrados, como determinavam os PNDH-1 e o PNDH-2. Estes estão ultrapassados. Agora, é preciso avançar: "incentivar e garantir a autonomia dos movimentos populares, ultrapassando os interesses institucionais partidários e religiosos (...) e reafirmando a opção fundamental (sic), que é nosso compromisso com os oprimidos", como rezava a Carta de Olinda, cujos termos Lula teve de moderar na sua Carta ao Povo Brasileiro, para ganhar votos.
O PNDH-3 realmente avança. É uma plataforma de política proativa . Cria novos direitos humanos. Vai "muito além dos direitos humanos" tradicionalmente contemplados, como manchetou O Globo, talvez o primeiro jornal a perceber a real dimensão do decreto. Além de criar esses novos direitos, o propósito é o de impor o seu reconhecimento e a forma objetiva de tutelá-los aos juízes, aos órgãos legislativos, às várias esferas da administração pública, aos governos que sucederem ao de Lula e à imprensa.
Deputados, senadores, vereadores, etc., pessoas incumbidas pela Constituição de fazerem as leis, não são confiáveis nem considerados, no decreto, como representantes da sociedade civil. Então, há que se cooptar "comissões" desses representantes, credenciados por sindicatos e entidades de todo tipo, para "adotar iniciativas legislativas diretas", por meio de "plebiscitos, referendos, leis de iniciativa popular e veto popular", ou seja, para fazer leis em lugar do Congresso Nacional e dos corpos legislativos.
Os juízes não têm discernimento para compreender e proteger os "direitos dos oprimidos". Assim, os proprietários de imóveis, urbanos ou rurais, continuariam podendo entrar com pedidos de reintegração de posse, no caso de invasões, mas o juiz só poderá decidir depois de ouvida uma "comissão" de representantes da sociedade civil, mais atenta, ao que se supõe, aos princípios da justiça social do que aos do Direito.
Já que as leis devem favorecer os "oprimidos" e a Justiça deve trabalhar para e pelos "oprimidos", é preciso um jornalismo que também vele por eles, instituindo-se "critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking (sic) de veículos de comunicação comprometidos com os direitos humanos assim como dos que cometem violações".
A noção de quem são os oprimidos é um tanto vaga, mas o PT, o Lula, a Dilma e as "organizações da sociedade civil" por eles designadas se encarregarão de nos elucidar a esse respeito, e também de nos dizer quais os legisladores, os juízes e os jornalistas que se situam no melhor ranking (sic) de respeito pelos "oprimidos", aptos a velar pelos direitos humanos desses brasileiros especificamente. Assim se cumprirá a "Diretriz nº 1 do PNDH-3: Interação democrática entre Estado e Sociedade Civil como instrumento de fortalecimento da democracia participativa". Ou seja, da democracia do povo, em lugar da democracia das elites, pois, afinal, é de um plano para pôr a Ágora no poder que estamos tratando.