domingo, janeiro 17, 2010

Argentina: mandar todos embora, outra vez? JOAQUÍN MORALES SOLÁ

O GLOBO


O ex-presidente argentino Eduardo Duhalde (janeiro de 2002 a maio de 2003) costuma dizer que a sociedade argentina parece caminhar para uma etapa na qual reclamará outra vez que se vayan todos. Dramatismo? Uma simples especulação para que os argentinos voltem a olhar para ele? A intenção de Duhalde pode ser uma dessas ou qualquer outra. O dilema crítico da política é, no entanto, que uma recente sondagem nacional sobre o estado da opinião pública dá razão ao ex-presidente.

A pesquisa foi feita por uma das mais prestigiosas empresas de análises de opinião pública, reconhecida por seus recentes acertos nos prognósticos eleitorais.

Segundo essa medição, concluída há poucos dias, os conflitos da política são, para a maioria social, o terceiro problema do país, depois da insegurança pública e do desemprego (que voltou a se alojar em um dos principais lugares da preocupação social).

A essa crítica da sociedade à política deve-se acrescentar outro resultado alarmante: uma enorme maioria (cerca de 70%) acredita que o país estará igual ou pior no futuro imediato. Se os conflitos da política são um problema e se o que vem é pior que o que está aí, onde haveria um mínimo capital político em condições de reconstruir a ilusão social? Encontrar as partículas desse capital intangível é o maior desafio atual da política.

A democracia necessita existencialmente da política, mas é a política que deve sedimentar-se como uma solução e não como um problema para os argentinos, cansados de crispações e enfrentamentos, segundo se deduz da pesquisa.

A crise da política se nota, inclusive, na valoração dos principais líderes. O mais popular de todos é o vice-presidente da República, Julio Cobos, mas ele só detém 44% de imagem positiva. A presidenta Cristina Kirchner chegou a ter mais de 60% quando foi candidata e quando já acumulava quatro anos de gestão de seu esposo (Néstor Kirchner, ex-presidente). Outros líderes políticos (os deputados nacionais Francisco de Narváez, Gabriela Michetti e Ricardo Alfonsín) seguem Cobos muito de perto, com 42% de imagem positiva.

Quando se olha para as intenções de votos para presidente, De Narváez, sim, tem um lugar entre os primeiros presidenciáveis.

Mas ele deve tem um problema com a Constituição: não nasceu na Argentina e o presidente deve ser argentino nato.

O conflito entre a lei e sua ambição só poderia ser resolvido por uma releitura da Constituição por parte da Corte Suprema de Justiça, mas isso ainda não aconteceu e o caso nem está no tribunal.

O primeiro peronista de fato e de direito que aparece no topo é Carlos Reutemann.

Não obstante, o senador da Província de Santa Fé tem insinuado que é provável que nunca se meta na selva implacável da luta presidencial.

Reutemann não tem corpo e nem alma para suportar o rigor de uma campanha presidencial carregada de ambições e candidatos. Outros peronistas (Duhalde, o deputado nacional Felipe Solá ou Néstor Kirchner) estão mais abaixo do que acima das preferências sociais.

Dos governantes que vinham com ambições presidenciais, Daniel Scioli (governador da Província de Buenos Aires) e Mauricio Macri (chefe de governo da Cidade de Buenos Aires), tombaram nas medições de opinião pública.

Scioli caiu muito mais que Macri.

A novidade pode ser também uma contradição com o resto da pesquisa: o principal problema de Scioli e de Macri é que seus erros são produto de uma escassa experiência política.

A reação social às transações da elite política é perceptível, também, quando se olha a lista dos mais impopulares.

Guillermo Moreno (secretário de Comércio) é o personagem público mais impopular do país, seguido de perto por LuisD´ Elía (dirigente da Central de Trabalhadores Argentinos), Hugo Moyano (líder da Central Geral de Trabalhadores) e pelo próprio ex-presidente Kirchner. O poder que atualmente governa está nesse quarteto.

O despótico Moreno é mais importante que o ministro da Economia Amado Boudou na hora de definir rumos da economia. Moyano tem tanto poder como Kirchner, e D'Elía é a expressão pública e prepotente dos que mandam. É possível ignorar impunemente durante tanto tempo a majoritária opinião social? Surgem também dirigentes com alta popularidade, mas com um enorme desconhecimento público. É o caso do senador Ernesto Sanz, presidente do Partido Radical, que é muito bem avaliado pelos dirigentes políticos e pelos argentinos que o connhecem, mas seis de cada dez consultados dizem não saber nada sobre ele ou sabem muito pouco.

Ocorre o mesmo com o governador de Chubut, Mario Das Neves: cinco de cada dez argentinos não o conhecem.

Os Kirchner estão na linha descendente de que padecem desde a crise com o setor rural, no ano passado. A curva de queda do casal presidencial começou claramente quando hostilizou os produtores do campo. Os Kirchner agora perfuraram o piso de 20% de aceitação, mas sua rejeição supera os 60% da opinião pública. Não há precedente de presidentes que tenham logrado se recompor depois de haver tocado tais índices de impopularidade.

Nem sequer a posibilidade de um 2010 melhor na economia deveria despertarlhes esperanças. Como recordou um analista de opinião pública, o presidente Carlos Menem também teve bons anos econômicos em 1997 e 1998, mas seu contrato com a sociedade já estava definitivamente rompido.

O período de Cristina Kirchner será lembrado por duas circunstâncias: o poder nas mãos de seu marido e a regressão econômica. Caso se concretize o decreto de uso de mais de US$ 6,5 bilhões das reservas cambiais para pagar dívida pública durante 2010, o Banco Central terá perdido uns 20% de suas reservas durante os dois anos de Cristina Kirchner. A presidenta recebeu o governo com US$ 50 bilhões, que se reduziriam a US$ 40 bilhões.

O poder que se fecha nas sombras luta por conservar seu direito à arbitrariedade.

A oposição não é um só partido; tem a dificuldade constante de restaurar seus fragmentos dispersos.

Nada mudaria sem a vocação dos políticos para renovar os estilos, os programas e também as pessoas. Esse é o maior clamor social captado pela recente pesquisa.

Não existem, é certo, todas as condições para outro alarido social buscando que se vayan todos. Mas o risco é demasiado alto. Começar o ano entre tais lamentos, não significa nada. A política não se define pelo invariável trânsito de calendário. Como escreveu Borges, la mañana sólo finge un comienzo (a manhã só finge um começo).

JOAQUÍN MORALES SOLÁ é jornalista do "La Nación"/GDA.

NOTA DA REDAÇÃO: João Ubaldo Ribeiro volta a escrever neste espaço no próximo mês.