sábado, dezembro 05, 2009

O Teatro Completo de Gógol

"Que terra infestada!"

Gógol queria um humor "construtivo", mas era bom mesmo
em destruir a pose dos hipócritas e dos corruptos


Carlos Graieb

Cidade da propina
Montagem de O Inspetor Geral pelo Grupo Galpão, no Brasil: nenhum
personagem positivo


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A palavra russa póshlost não tem equivalente exato em português – ou em qualquer outra língua. No Brasil, no entanto, não é difícil compreender do que se trata. Basta olhar para os políticos com propina enfiada na meia ou na cueca. A vulgaridade, a indecência, a hipocrisia desses personagens – tudo isso junto, enrolado em um novelo, constitui o póshlost. Dos grandes escritores russos, o mais associado ao combate a essa praga é Nikolai Gógol (1809-1852). Sua arma é o humor. E a maneira como ele a maneja pode ser observada no delicioso volume do seu Teatro Completo (tradução e organização de Arlete Cavalieri; Editora 34; 408 páginas; 52 reais), que acaba de chegar às livrarias.

Apropriadamente nascido num 1º de abril, e dono de um célebre nariz pontudo (tão pontudo que ele era capaz de tocá-lo com o lábio inferior), Gógol foi, nas palavras de seu conterrâneo e discípulo Vladimir Nabokov, "o mais singular poeta-prosador que a Rússia já produziu". Sua obra é compacta. Há um punhado de contos, entre os quais o mais célebre é O Capote, sobre um pequeno funcionário mofino e de "cor hemorroidal", que definha, e por fim se transforma em fantasma, depois que o sobretudo em que gastou todas as suas economias lhe é roubado. Há um único romance, a obra-prima Almas Mortas, sobre o patife Chichikov, que percorre o interior da Rússia com o plano de lucrar com um negócio absurdo – a compra de servos mortos. E há as cinco peças que compõem o volume agora lançado no Brasil. Apenas uma é bem conhecida: a comédia O Inspetor Geral. Os Jogadores e O Casamento são igualmente comédias, ao passo que Saída do Teatro e Desenlace de O Inspetor Geral são curiosas reflexões sobre o teatro e a serventia, por assim dizer existencial, do riso.

O Inspetor Geral e Os Jogadores são povoadas de corruptos e escroques. Na primeira, um vilarejo inteiro confunde Klestákov, um jovem estúpido, com um emissário do governo. Um a um, os luminares do lugar lhe oferecem suborno para que ele faça vista grossa aos seus "pecadilhos". Os Jogadores se passa numa hospedaria na qual se encontram vários homens que vivem, todos eles, pela lei da trapaça. Nenhuma das peças tem um único personagem positivo. A frase de um dos anti-heróis de Os Jogadores descreve bem o mundo onde se movem esses personagens: "Que terra infestada!". Quanto a O Casamento, seus protagonistas são dois homens que, ambos patéticos, são, no entanto, o negativo um do outro. Ao cortejar a mesma mulher, eles transformam a própria ideia de amor em algo grotesco.

Akg/Latinstock

Humor corrosivo
Gógol: "o mais singular poeta-prosador
que a Rússia já produziu"


As três comédias de Gógol dão vazão a um humor intensamente corrosivo, ancorado não só nas peripécias do enredo, mas numa linguagem repleta torções e trocadilhos. ("Permita-me observar que eu... até certo ponto... sou casada", diz a mulher do prefeito a Klestákov). Ao longo da vida, o próprio Gógol nunca se sentiu muito confortável com as implicações mais radicais de seu humor. Assim, escreveu Saída do Teatro e Desenlace de O Inspetor Geral, nos quais tenta propor uma teoria construtiva ou edificante do riso. Esse último texto, em especial, ele desejou que fosse encenado em seguida a cada apresentação de O Inspetor Geral – pedido nunca atendido. Nele, Gógol sugere que os personagens da peça sejam vistos como paixões ruins, abrigadas no peito de cada pessoa. Haveria um meio para expulsá-las: "Com o riso, temido por nossas paixões mais mesquinhas". Há diversas razões possíveis para que ele tenha formulado essas ideias – do medo da censura e da rejeição do público às preocupações religiosas. Entre os que mais se opuseram à transformação de O Inspetor Geral numa espécie de alegoria, estava um amigo de Gógol, o ator Chtchépkin. "Não me faça alusões de que eles não são funcionários, mas nossas próprias paixões. São gente de verdade, estão vivos." Não é difícil simpatizar com a opinião de Chtchépkin. Sobretudo quando se olha em volta e se vê tanta gente que merece, de fato, o riso demolidor de Gógol.