sábado, novembro 21, 2009

Vale investigar a herança contida nos genes?

O testamento dentro de cada um

Os dilemas impostos pelos testes que investigam a herança genética
para doenças graves - muitas delas intratáveis e incuráveis


Adriana Dias Lopes


Alexandre Schneider
CARINA CARVALHO DA SILVA
30 anos, professora
Doença familiar: Huntington, distúrbio neurológico que compromete os movimentos do corpo até a paralisia
Histórico: o pai é paciente terminal da doença
É portadora do gene defeituoso? Não
Comentário: depois de nove anos para decidir se faria ou não o exame, Carina resolveu se submeter ao teste genético para, no caso de o resultado ser positivo, ela organizar o seu futuro e o da filha, Carolina (na foto à esquerda)

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O plano estava traçado. Carina Carvalho da Silva, de 30 anos, compraria uma casa sem espelhos e sem vidros. Voltaria a fumar e romperia o namoro de seis meses. Abandonaria os estudos para o concurso público e sua única filha, Carolina, de 14 anos, ficaria sob os cuidados do ex-marido. As medidas seriam tomadas caso ela recebesse um resultado positivo do exame médico que marcaria sua vida de forma incancelável: o teste que verificaria se ela era portadora da mesma mutação genética que levara seu pai a viver em estado vegetativo. Aos 54 anos, João convive desde 2000 com a doença de Huntington, um problema neurodegenerativo incurável, cuja característica é manifestar-se a partir da terceira década de vida. O distúrbio é raro (dez casos em cada 100 000 pessoas), mas Carina tinha 50% de probabilidade de ser portadora do gene defeituoso. "Só decidi fazer o exame depois de organizar o meu futuro e o de minha filha na hipótese de eu ser portadora do gene", diz ela, que pensou em cada detalhe ao longo de nove anos. A casa desprovida de objetos cortantes era para garantir sua segurança, já que o portador de Huntington tem dificuldade para controlar os movimentos do corpo. Separar-se da filha e do namorado evitaria que ambos sofressem demasiado com a inevitável decadência física. A retomada do vício e o abandono dos estudos representavam a parte do plano de não ter planos diante do possível diagnóstico aterrador. Em 19 de outubro, às 2 e meia da tarde, um médico leu para ela o resultado do exame: negativo. Alívio, claro, e plano desfeito.

Todos os anos, 2 000 brasileiros passam por uma situação semelhante à de Carina. São homens e mulheres que se submetem aos testes genéticos preditivos, que identificam a suscetibilidade a determinadas doenças, antes de sua possível instalação. O que fazer diante do resultado positivo para uma doença incurável, para a qual ainda não há tratamento? E quando a opção mais eficaz de tratamento é radical e irreversível, como a extirpação completa de um órgão? "Os testes genéticos preditivos levantam as questões mais tormentosas da medicina sob o ponto de vista ético e individual", diz Erickson Gavazza, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e especialista em bioética.

Fotos Alexandre Schneider
HELENA BITTENCOURT,
4 meses
Doença familiar: paramiloidose, que causa atrofia dos nervos até a paralisia total
Histórico: a avó paterna e um tio morreram vítimas da doença. Aos 33 anos, André (na foto com a filha, Helena, e a mulher, Paula) é portador do gene defeituoso e já manifesta os primeiros sintomas da doença
É portadora do gene defeituoso? Não
Comentário: Helena nasceu de um embrião selecionado. Os pais optaram pela fertilização in vitro para eliminar a possibilidade de terem uma criança com o gene da doença


Atualmente, a análise de DNA permite que se constate o risco de desenvolvimento de uma centena de doenças. No Brasil, há cerca de vinte centros especializados, entre hospitais e laboratórios, localizados nas principais capitais. O preço de um teste genético preditivo varia de 600 a 15 000 reais, conforme a complexidade do processo. O controle sobre uma doença de origem genética varia muito. No caso de enfermidades como obesidade, diabetes e colesterol alto, a genética influencia, mas não as determina. O peso do fator ambiental é muito maior. Com mudanças no estilo de vida, é possível impedir a manifestação dos genes associados a elas. Há, no entanto, os casos em que a genética ou é uma sentença inapelável de desenvolvimento de uma doença, como o Huntington do pai de Carina, ou é o principal fator de risco para o aparecimento de uma série de moléstias, sobretudo o câncer (veja o quadro ao lado). São os pacientes pertencentes a esses dois grupos que enfrentam os piores dilemas impostos pelos exames genéticos preditivos.

ROSENÉIA MELO,
55 anos, gerente administrativa
Doença familiar: câncer de mama
Histórico: a mãe e uma das cinco irmãs morreram vítimas da doença. Três irmãs têm a mutação genética do câncer de mama - Maria Aparecida, Maria Elisete e Rita Maria (na foto, ao fundo, da esquerda para a direita)
É portadora do gene defeituoso? Sim
Comentário: ela optou pela mastectomia radical das duas mamas. Com isso, o risco de manifestação da doença caiu de 85% para 1%


A gerente administrativa Rosenéia Melo, de 55 anos, vem de uma família marcada pelo câncer de mama. Sua mãe e uma irmã morreram vítimas da doença, com metástase nos ossos, um calvário longo e doloroso. Outras três irmãs também tiveram esse câncer, mas conseguiram flagrar os tumores em fases iniciais - e estão bem. Há dois anos, Rosenéia decidiu investigar se teria o mesmo destino genético familiar. Descobriu que sim, por ser portadora do gene, que aumenta em 85% a possibilidade de ocorrência desse tipo de tumor. "Vi minha irmã morrer aos poucos, e não queria o mesmo fim para mim", diz ela. Rosenéia não titubeou. Como medida preventiva, submeteu-se a uma mastectomia radical nas duas mamas. Com a cirurgia, Rosenéia baixou para 1% sua vulnerabilidade à doença (algumas células mamárias podem ter sobrado). "Entre todos os cânceres de origem genética, o de mama é o que oferece o maior número de opções de tratamento preventivo", afirma a geneticista Maria Isabel Achatz, diretora da Oncogenética do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. Em vez da mastectomia, ela poderia ter optado por tratamentos medicamentosos. "Nesse caso, o risco de desenvolvimento da doença cai para 50%", diz Bernardo Garicochea, oncologista do Hospital Sírio-Libanês em São Paulo e da PUC do Rio Grande do Sul

RAFAEL SIBET,
18 anos, estudante
Doença familiar: Huntington, distúrbio neurológico que compromete os movimentos do corpo até a paralisia
Histórico: seu pai, João (na foto, ao lado da mulher, Idê), tem o gene defeituoso
É portador do gene defeituoso? Prefere não saber
Comentário: em sua opinião, não há por que descobrir se é portador do gene que o levará a desenvolver uma doença para a qual não há cura nem tratamento


Há cerca de vinte tipos de tumor maligno de origem genética que podem ser identificados por testes preditivos. O administrador de empresas Weliton Teixeira Leite, de 38 anos, descobriu-se portador de um câncer de intestino em fase inicial graças a um exame de colonoscopia. Era fruto de herança genética materna, como ele ficou sabendo depois de fazer um exame específico. Leite removeu apenas a região tomada pelo tumor. Com tal decisão, assumiu um risco oito vezes maior de sofrer uma recidiva. "Por causa de minha mãe, que tirou o intestino, conheço todas as limitações impostas pela cirurgia radical", diz ele. "Eu prefiro viver menos, mas bem." Leite tem receio de que o gene defeituoso tenha sido transmitido a seus dois filhos, Weliton, de 4 anos, e Anna Karolina, de 5. Os especialistas não recomendam a realização dos exames preditivos em crianças porque isso implicaria um impacto psicológico muito grande.

Há crianças, no entanto, cujo nascimento foi definido por testes genéticos preditivos. A menina Helena Bittencourt, de 4 meses, é resultado de uma fertilização in vitro. Seu pai, André, de 33 anos, herdou da mãe dele o gene da paramiloidose, doença caracterizada pela deficiência de uma enzima essencial para o controle dos movimentos do corpo. Desejosos de um filho, mas com medo de que a criança nascesse com a marca genética paterna, André e a mulher, Paula, decidiram-se pelo bebê de proveta. Dos nove embriões gerados em laboratório, sete tinham o gene da paramiloidose. Os que se mostraram livres da herança ruim foram implantados - deles vingou Helena.

WELITON TEIXEIRA LEITE,
38 anos, administrador de empresas
Doença familiar: câncer de intestino
Histórico: a mãe já manifestou a doença e foi submetida à extração total do intestino grosso
É portador do gene defeituoso? Sim
Comentário: Weliton já apresentou os primeiros sinais da doença e optou pela extração parcial do intestino. Como ele tem o gene do câncer, seu risco de recidiva é oito vezes maior que o de alguém que não apresenta a mutação genética


Segundo um estudo coordenado pela neurocientista Iscia Cendes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a maioria das pessoas não está preparada para enfrentar um teste preditivo. De cada dez pacientes com histórico familiar de doenças genéticas incuráveis que chegam à Unicamp com tal objetivo, sete desistem. E 30% das desistências são incentivadas pelos próprios profissionais de saúde. O motivo é a falta de estrutura psicológica para suportar o eventual baque de um resultado positivo. Os primeiros testes genéticos preditivos chegaram ao Brasil no fim dos anos 80. De lá para cá, os especialistas concluíram pela necessidade de dar assistência aos pacientes antes e depois do veredicto do exame. Toda pessoa que se submete a um teste genético preditivo passa obrigatoriamente por aconselhamento com o médico geneticista, psicólogos e assistentes sociais. Os profissionais avaliam a capacidade de ela lidar com um resultado positivo e apresentam as consequências de tal notícia. "Basta que o paciente mostre um pingo de dúvida para que lhe seja sugerido voltar para casa", afirma o médico geneticista Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.

A discussão em torno do uso do exame genético para determinar o risco de doenças intratáveis e incuráveis divide os especialistas. Para Raskin, ele deve ser feito, sim, sempre que o paciente estiver preparado para suportar o peso de um resultado problemático. Já a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, é contra. Diz ela: "Identificar numa pessoa jovem, saudável, a existência de uma alteração genética que pode provocar uma doença aos 40, 50 anos, sem que nada possa ser feito a respeito, parece-me absolutamente desaconselhável. Nessa circunstância, os testes preditivos servem apenas para antecipar o sofrimento". O estudante Rafael Sibet, de 18 anos, preferiu não saber. Seu pai sofre de Huntington. "De que adiantaria saber hoje que vou ter essa doença no futuro?", diz. Rafael faz de conta que o risco não existe. "Sou muito feliz e é isso que importa", completa. Viver exclusivamente o presente é também um bom plano.