sábado, novembro 21, 2009

J. R. Guzzo É nisso que dá


Ditaduras, pelo mundo afora e em qualquer época, têm os seus próprios usos, costumes e manias. Há ditaduras, por exemplo, que não gostam de portos, principalmente se são grandes. Cidades com quilômetros de cais de frente para o mar, navios de outros países e muito entra e sai tendem a ser mais abertas, com uma circulação maior de gente, de ideias e de novidades; é mais difícil mantê-las isoladas do resto do mundo, e ditaduras ficam inquietas com isso. Outras gostam de avenidas bem largas, onde possam fazer desfiles e levar a passeio seus tanques de guerra - além de tornarem mais fácil a movimentação da tropa de choque da polícia, em caso de protesto público. Há ditaduras que proíbem a reza do terço, as que determinam quais roupas ou cortes de cabelo os cidadãos podem usar e as que só permitem o acesso da população a livros, filmes, músicas e espetáculos oficialmente aprovados pelo governo. Já houve ditaduras que não deixavam as pessoas ter listas telefônicas, no tempo em que elas existiam; eram consideradas segredo de estado. Os estilos podem variar, mas todos os regimes totalitários, naturalmente, têm coisas essenciais em comum, e essas não mudam nunca. Uma das que mais prezam é o culto sistemático à mentira.

O Brasil oficial de hoje, cada vez mais, faz um esforço concentrado para mentir. Um governo não se transforma em ditadura só porque mente; é preciso fazer bem mais, e bem pior que isso, para chegar lá. Mas quando copia com tanto empenho um dos métodos de ação mais utilizados pelos regimes de força acaba ficando, sem dúvida, mais parecido com eles. Nessa salada entra tudo. Há a mentira pura e simples, em que se negam fatos que comprovadamente aconteceram - ou se garante a existência de fatos jamais acontecidos. Há a ocultação da verdade. Há a propagação de realizações inexistentes. Há as explicações, justificativas e desculpas falsas para erros que não foi possível esconder. Há mentiras bem contadas e mentiras mal contadas, as que vêm disfarçadas como equívocos e as que são ditas com as piores intenções - no fundo, apenas mentiras, todas elas, como a população teve mais uma oportunidade de constatar no recente episódio do apagão geral, que deixou dezoito estados brasileiros sem luz nem energia durante quase seis horas. Diversas modalidades de mentira que fazem parte do repertório habitual do governo foram utilizadas na ocasião, mas ninguém ofereceu um resumo melhor dessa maneira de governar do que a ministra Dilma Rousseff. "Não vai ter apagão", havia garantido a ministra quinze dias antes; disse que isso era "uma certeza". Quando o problema surgiu, ela sumiu. "Ciao", foi tudo o que disse aos jornalistas até reaparecer, dois dias depois, sustentando que não tinha falado em apagão na sua entrevista, e sim que não haveria "racionamento". Mas falou - está gravado na entrevista que deu ao programa Bom Dia, Ministro, da Radiobras, em 29 de outubro. Em seguida, sempre no procedimento-padrão do governo, Dilma deu o caso "por encerrado". E a realidade dos fatos? Foi apagada da memória oficial.

Consta que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou muito bravo, na hora do apagão, com assessores que lhe davam informações falsas, jogavam a culpa uns sobre os outros e falavam de coisas que não sabiam. Não se sabe se ficou mesmo, mas se ficou ele terá sentido o gosto do seu próprio remédio. Como exigir, diante do exemplo que vive dando, que os subordinados lhe digam a verdade? Dias antes do apagão, Lula afirmou que o mensalão, um dos episódios materialmente mais comprovados da história política brasileira, não existiu; foi tudo uma tentativa de "golpe" contra ele. Na mesma linha, tem dito que as críticas do ex-presidente Fernando Henrique a ele e a seu governo são "nazistas" - e aproveitou para dizer que o apagão "do Fernando Henrique" foi pior que o seu. (Um levantamento do jornal O Estado de S.Paulo mostra que ao longo do seu governo Lula já mencionou esse fato 55 vezes. Aí já é ideia fixa.) O presidente, além disso, teve mais um belo exemplo do que costuma acontecer quando se vive cercado de bajuladores em tempo integral. Sua prioridade não é dizer a verdade ao chefe; é dizer o que acham que ele quer ouvir. Compreende-se - ninguém faz carreira, nesse ramo de atividade, dizendo as coisas como elas são. "Falar com alguma sinceridade é perigoso", dizia Oscar Wilde. "Falar com muita sinceridade é fatal."

O presidente vai continuar ouvindo mais do mesmo. Não há vocações para o suicídio no Palácio do Planalto.