sábado, outubro 03, 2009

Um parente de 4,4 milhões de anos

Na passarela da evolução

Mais alta e mais velha, Ardi surgiu para ameaçar o estrelato
de Lucy, mas, com ossos bem preservados, ambas são modelos
ideais para o estudo das mutações que produziram a humanidade


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Lucy, 3,2 milhões de anos, 26 quilos, 1 metro de altura, reinou sozinha na passarela da evolução durante um quarto de século. Desde a semana passada, ela tem de dividir os holofotes com outra estrela do ramo, Ardi, de 50 quilos, 1,20 metro e sólidos 4,4 milhões de anos. Lucy foi descoberta pelo americano Donald Johanson em 1974 e tornou-se uma celebridade instantânea. A carreira de Ardi até o topo da fama foi mais árdua. Ela foi desencavada em 1994. Durante os quinze anos seguintes, uma equipe de 47 especialistas chefiada pelo americano Tim White aferiu cuidadosamente suas medidas de cintura, braços, crânio e de cada dente da arcada. Finalmente satisfeitos com as medições, eles colocaram Ardi na capa da mais respeitada revista científica do mundo, a Science. Ardi e Lucy são originárias de uma mesma região da Etiópia, o Triângulo de Afar. Esse lugar desértico do coração oriental da África está para a paleoantropologia assim como o Rio Grande do Sul está para a moda. Do sul do Brasil saem modelos perfeitas como Gisele Bündchen e Alessandra Ambrosio. De Afar saem os mais conservados e completos exemplares fósseis dos mais antigos antepassados da espécie humana.

Lucy e Ardi são as modelos mais perfeitas da aurora da humanidade. Ardi viveu mais de 1 milhão de anos antes de Lucy. Ambas são avós humanas e só humanas – ou seja, elas pertencem a uma espécie de antepassado que já havia saltado do grande tronco evolutivo comum do qual brotaram a humanidade e também seus primos mais próximos, os primatas. Tanto Lucy, um exemplar de Australopithecus afarensis, quanto Ardi, uma Ardipithecus ramidus, são do galho da árvore evolutiva que levou ao surgimento do Homo sapiens. Isso e o fato de terem nos legado ossadas muito completas justificam a fama. Ardi e Lucy serão destronadas quando o deserto de Afar entregar seu mais precioso tesouro, os ossos do antepassado comum dos homens e dos primatas, o verdadeiro "elo perdido". Os paleoantropólogos sabem que os ossos do elo perdido estão enterrados em alguma dobra do solo da que é a segunda região mais quente do mundo (recorde de 64 graus, registrados em 1930), atrás apenas de Dasht-e Lut, o atemorizante deserto de sal do sudeste do Irã. Enquanto o elo perdido não for encontrado, Ardi e Lucy reinarão soberanas. A partir de seus ossos calcinados, preservados por milhões de anos em lava vulcânica, os especialistas conseguem reproduzir com exatidão seus traços físicos e o mundo à sua volta.

Fotos Michel Laplace/Reuters e John Readers/Spl/Latinstock
AFAR, O BERÇO da humanidade, na Etiópia, e Johanson e equipe em 1974, ano em que ele descobriu o fóssil apelidado de Lucy


Os estudos dos ossos de Lucy ajudaram a esclarecer a ordem em que apareceram os traços humanos. A saber, primeiro surgiu o polegar opositor (que aponta para fora da mão em um ângulo de 90 graus em relação aos demais dedos), depois a capacidade de andar ereto ou a bipedalidade (andar sobre dois pés) e, só então, o cérebro passou a crescer em tamanho e complexidade. Tais características, é obrigatório lembrar em homenagem a Charles Darwin (1809-1882), não são planejadas. A grande demonstração de Darwin foi obter evidências – das quais extraiu sua teoria – de que os traços positivos ou negativos surgem nas espécies como resultado de mutações aleatórias, que, no século XIX, ele não sabia serem de origem genética. Quando elas se mostram úteis, proporcionam a vantagem competitiva que aumenta as chances de sobrevivência do indivíduo. O polegar opositor foi uma mutação que só deu vantagem aos antepassados do homem quando as florestas de árvores altas sumiram da paisagem africana, dando origem à savana. Uma vez no chão, o polegar opositor deu a conformação ideal à mão dos hominídeos para poder agarrar pedras e usá-las como armas. A bipedalidade foi, literalmente, uma dor nas costas para os antepassados dos homens que viviam nas florestas. A posição ereta era incômoda e só assumida por alguns poucos minutos de cada vez. A bipedalidade só começou mesmo a valer a pena quando a mudança climática varreu as florestas e a savana passou a dominar a paisagem. Ela deu agilidade, e o andar ereto manteve os olhos na posição e nas atitudes corretas para enxergar um predador quando ainda desse tempo de escapar. Lucy já se locomovia confortavelmente sobre dois pés arqueados. Ardi era mais encorpada e tinha pés chatos. Nada que envergonhasse uma mulher há 4,4 milhões de anos, mas quando ela andava seu corpo balançava de um lado para outro. Ao contrário dos gorilas atuais, no momento em que abandonava a postura ereta Ardi não precisava fechar os punhos e sobre eles se apoiar. Ela colocava as patas abertas no solo. Apoiar-se sobre os punhos era coisa de macaco, postura inadequada para uma representante dos Ardipithecus.

Os 4,4 milhões de anos colocam Ardi muito perto do elo perdido na escala evolutiva. A separação teria se dado por volta de 7 milhões de anos atrás. Isso é um problema. A existência de um integrante tão primitivo, mas claramente antepassado do homem, obriga os especialistas a repensar toda a árvore da evolução – ou pelo menos o ritmo das transformações. Como podem a elegante Ardi e o elo perdido estar separados por apenas 2,6 milhões de anos? A teoria mais aceita sustenta que nesse período os homens e os macacos teriam se diferenciado bem menos. Ou seja, para não contrariar a teoria, Ardi precisaria ter traços bem mais primitivos. O que fazer com a teoria? "Poderíamos inferir que também o antepassado comum deve ter sido um ser bem menos parecido com os macacos do que se imaginava até agora", diz Alan Walker, especialista em evolução da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos. A cada nova descoberta, a linhagem do homem parece ser mais antiga. O elo perdido, que antes de Lucy esteve na casa dos 3 milhões de anos, foi jogado por ela para os 7 milhões de anos. Ardi certamente vai obrigar os cientistas a deslocá-lo para eras ainda mais remotas – talvez para alguma coisa em torno de 9 milhões de anos. Que o façam ou rasguem a teoria e encarem a "hipótese extraordinária" sugerida, para espanto geral, por Richard Leakey, o lendário caçador de fósseis do Quênia: "O homem descende de uma linhagem só sua, única, e não tem antepassado comum com os demais primatas".