Os pedestres que cruzam as ruas transversais da Avenida Paulista nunca esperam o sinal verde para atravessar - pois a demora deste é proporcional ao movimento da mais importante avenida paulistana. Lá são frequentes os quase atropelamentos de pessoas que atravessam com semáforo no vermelho. (Geralmente fico sozinho esperando o verde, o que até dá um certo constrangimento). Outro dia, ia na minha frente uma jovem cega, que seguia com sua bengala-guia, conduzindo-se pela faixa especial, quando chegou ao cruzamento. Com toda a gentileza, um jovem ofereceu-se para ajudá-la a atravessar, com o sinal vermelho (como todo mundo fazia). E faltou pouco para a moça ser atropelada por uma enorme camionete. Assim, por generoso espírito de solidariedade, o jovem cidadão quase fez a moça morrer esmagada sob as rodas potentes de um utilitário. Deve ter pensado: se todos ali tinham o direito de se arriscar, violando a regra (de atravessar no verde), não conceder tal direito aos cegos não seria uma odiosa discriminação?
Um menino de 11 anos viajou clandestino, entre o diferencial traseiro e o tanque de combustível do ônibus de romeiros, de Sales a Aparecida - viagem de 600 quilômetros, em dez horas - para pagar uma promessa à padroeira, por seus pais terem parado de brigar. Todos - especialmente coleguinhas comovidos nas rádios - falavam do "milagre". Certamente Nossa Senhora havia salvado aquele pequeno "herói", que quase jogou a vida fora por uma violação estúpida de regras mínimas de segurança. É claro que o piedoso heroísmo do garoto será imitado por inúmeras crianças, portadoras de precoce fobia de anonimato - pois a coragem de se arriscar violando regras pode ser a ascensão de qualquer um ao estado de celebridade.
Segundo um ministro de Estado, trata-se de uma "onda persecutória" contra os "movimentos sociais" a animosidade que despertaram aquelas cenas nos telejornais em que apareciam tratores derrubando pés de laranja enfileirados e outros atos de vandalismo praticados por militantes sem-terra. E é a "onda persecutória", certamente, que tem levado a essa insistente tentativa de instalar uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar o repasse de dinheiro público a tais movimentos, que lutam para ver implantada a justiça no campo - luta na qual exercem seu sagrado direito de violar (propriedades, liberdade de locomoção do próximo, sedes de fazendas produtivas, laboratórios de aperfeiçoamento genético de sementes, espaços públicos ou particulares, cabines de pedágio e suas receitas, cargas de caminhão, etc., etc.).
Foi só um gesto singelo, mas cheio de simbolismo: o chefe de Estado e governo pegou um bombom, que lhe ofereceram enquanto assistia a determinada apresentação, desembrulhou-o, começou a comê-lo, enquanto discretamente amassava o papel e o jogava no chão, meio escondido - cena captada por uma câmera de televisão e transmitida para o mundo. Ora, por que se impediria uma pessoa - só por ser presidente da República - de exercer seu pleno direito de violar, discretamente, pequenas regras de educação, como fazem os demais cidadãos?
Outro ministro de Estado negou que o "comício do São Francisco" representasse qualquer antecipação da campanha sucessória presidencial. Disse ele que "o governo não só tem o direito, mas a obrigação de dar visibilidade a seus atos". Achou natural que essas inspeções técnicas tenham distribuição de brindes, sorteios, cantores e outros festejos no palanque. Ou será que se deveria prantear por antecipação a provável morte do rio? E ainda vêm falar em "vale-tudo"? Ora, prefeririam um "vale-nada"?
E quantas violações não têm sido praticadas em nosso espaço público-político, por meio de atos secretos, de mensalões, de tráfico de influência, de caixa 2, de operações sanguessuga, de operações vampiro, de dólares na cueca, de dossiês de aloprados, de lavagem de dinheiro, de formação de quadrilha, de falsidade ideológica, tudo isso até hoje desfrutando a mais ampla, geral e irrestrita impunidade? Há que se concluir, então, que o País está passando por uma formidável revolução silenciosa, não vista antes em lugar nenhum do mundo: é o princípio constitucional da isonomia transmudado em democrática liberdade de delinquir, de violar regras, é a plena autonomia criminosa, estendida a todos os interessados, sem preconceito de raça, de cor, de grupo social, de localização regional ou que mais diferenças existam entre os cidadãos circulantes no vasto território nacional. E a maior prova da generosidade com que é estendido esse nosso sagrado direito à violação é seu pleno desfrute, também concedido a todos os estrangeiros que nos visitem. Expressivo foi o caso, por exemplo, do jovem turista francês que, bêbado, atropelou uma jovem, deixando-a em estado vegetativo, pagou uma pequena fiança e voltou encantado para sua terra, afirmando com orgulho: "Eu já sabia que aqui isso não ia dar em nada." É que o mundo já sabe deste nosso paraíso, onde o direito à violação foi democraticamente institucionalizado - daí a liberdade de turismo sexual, de pedofilia, de atropelamentos sem punição, de "pequenos tráficos"...
Bem a propósito, o governo está propondo ao Congresso mudanças na lei antidrogas para "livrar os pequenos traficantes da cadeia". Agora será mais fácil para os grandes traficantes convencerem os pais das pequenas "mulas" de que não haverá risco algum em introduzirem seus filhos num negócio que significará a independência financeira da família. E será festejada pela delinquência mundial a abertura, no Brasil, da Primeira Escola Maternal de Tráfico (Premat).