sábado, setembro 19, 2009

O desenhista Carlos Drummond de Andrade

O traço do poeta

Artista diletante, Carlos Drummond de Andrade deixou dezenas de desenhos
e caricaturas que sua família agora está organizando para um livro


Marcelo Bortoloti

Fotos Pedro Moares/VM e arquivo Lelia Coelho Frota
A LETRA E O RISCO
Drummond e uma de suas autocaricaturas (à dir.): ele se dizia fascinado pela "forma visual das palavras"


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Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) cultivava a fama de homem reservado. Diligente funcionário público e pai de família conservador, o poeta mineiro definiu-se certa vez como um "urso-polar", uma criatura arredia que vive em temperaturas glaciais. Aqueles que privaram de sua intimidade, porém, conheceram outro Drummond: um sujeito mulherengo e brincalhão, que tinha mania de passar trotes ao telefone e espantava os netos com a "mágica de tirar os dentes". Esse lado galhofeiro de sua personalidade expressava-se também no traço. Nome fundamental da poesia moderna brasileira, o autor de Sentimento do Mundo e Claro Enigma era um caricaturista amador. Gostava de desenhar a si próprio, sempre exagerando a testa larga e as orelhas salientes. Com os mesmos traços ligeiros, retratou amigos, como o poeta Manuel Bandeira e a escritora Lygia Fagundes Telles, e a filha, Maria Julieta. Essa produção - dezenas de caricaturas, rabiscos e figuras, boa parte inédita - está sendo reunida pela família para a publicação de um livro, com lançamento previsto para o ano que vem.

Fotos Acervo Fundação Casa Rui Barbosa/Acervo de família
RABISCOS COMPULSIVOS
A família no Rio, em desenho dos anos 50: Drummond traçava suas figuras enquanto falava ao telefone


Para Drummond, o desenho era, muito literalmente, um passatempo. De modo quase compulsivo, ele traçava suas figurinhas despretensiosas quando falava ao telefone. Deixou dezenas de desenhos e descartou outros tantos. "Alguns eu recolhi do lixo, sem que ele percebesse. Eu achava que eram bons e mostravam um lado simpático dele", diz seu neto Pedro Augusto, o primeiro a organizar os desenhos do avô. Pedro Augusto lembra-se de várias caricaturas de Gustavo Capanema, ministro da Educação de Getúlio Vargas, que, nos anos 30, converteu o amigo de infância Drummond em chefe de gabinete. Mas nenhuma delas sobreviveu. O caricaturista diletante nunca arquivou seus desenhos, ao contrário do que fez meticulosamente com qualquer escrito seu. Ele não atribuía valor a sua produção gráfica. Seu traço, de fato, era tosco, desprovido de profundidade e detalhe - como se nota no singelo desenho dos anos 50 que mostra sua família no Rio de Janeiro, à sombra de um desproporcional Corcovado. Drummond, contudo, às vezes conseguia capturar os traços essenciais de um personagem, como a boca proeminente do dentuço Bandeira.

LINHAS ESSENCIAIS
Manuel Bandeira e Drummond: caricaturista de recursos limitados, o poeta mineiro conseguiu, ainda assim, captar os traços mais marcantes (e cômicos) do amigo (à esq.)


O único conjunto organizado de desenhos do poeta encontra-se na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, que guarda o acervo pessoal do autor. É um caderno com trinta desenhos, sem identificação dos personagens retratados. A maioria foi feita com caneta esferográfica, com detalhes coloridos em pincel hidrográfico. Drummond fez todos em um dia de 1983, provavelmente durante um "sabadoyle" - nome criado por Raul Bopp para definir as reuniões de escritores promovidas pelo bibliófilo Plínio Doyle, que guardou o caderno com os rabiscos de Drummond. Há vários desenhos nas mãos de escritores e amigos. A crítica de arte Lélia Coelho Frota ganhou de presente três autocaricaturas e dois retratos dela feitos pelo poeta em papel timbrado do Ministério da Educação, onde trabalhava. No mesmo papel barnabé, o autor traçou quatro desenhos, de frente e perfil, de Lygia Fagundes Telles, que foram presenteados à amiga escritora. Elegantes, os retratos da jovem Lygia não trazem o traço cômico com que Drummond fustigava os amigos do sexo masculino.

RETRATO ELEGANTE
Drummond com Lygia Fagundes Telles, nos anos 50: ele desenhou a escritora (à dir.) em papel timbrado do Ministério da Educação


As caricaturas atestam o interesse de Drummond pelas artes gráficas. Na juventude, ele lia e colecionava revistas humorísticas do início do século passado, como O Malho e Careta. Era fã de Alvarus, J. Carlos e outros grandes cartunistas da época. "Desde criança eu tive uma fascinação inconsciente pela forma visual das palavras. Gostava do formato das letras antes mesmo de saber ler. Quando folheava um jornal com desenhos, traços e tipos de letra, aquilo me causava uma impressão muito forte", declarou no documentário O Fazendeiro do Ar, de 1972, dirigido por Fernando Sabino. A preocupação com a forma visual aparece episodicamente na sua poesia. Um exemplo são os versos de Escada, dos anos 50, que arremedam os degraus retorcidos da escada barroca onde se perdem os amantes furtivos descritos no poema. E Lição de Coisas, de 1962, traz alguns flertes com a poesia concreta, que dava um peso hipertrofiado à dimensão visual dos poemas (a relação entre Drummond e os concretistas, porém, seria marcada pela hostilidade mútua).

Foi nas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, nas décadas de 70 e 80, que o seu entusiasmo pelas artes gráficas, e em especial pela caricatura, ficou mais patente. "O caricaturista é uma pessoa que nos ajuda a viver, manifestando o cômico subjacente no trivial, no grave ou no dramático. Rimos dos outros sem desconfiar que rimos de nós mesmos e da condição humana", escreveu em 1971. As crônicas também falam do prazer que o poeta tinha em rabiscar em papéis soltos, sem saber o que sairia do seu traço canhestro. "Seria ótimo ter nascido caricaturista", escreveu Drummond. Em outras entrevistas, ele também lamentava não ter sido fazendeiro, como o pai, ou jornalista. Há falsa modéstia nessas declarações: Drummond sabia que, como poeta, ocupava um lugar central na cultura brasileira.