sábado, setembro 26, 2009

As Suspeitas do Sr. Whicher, de Kate Summerscale

O nascimento dos Sherlocks

Uma jornalista inglesa reconstitui um crime bárbaro do século XIX no
qual comparece uma nova figura da investigação criminal: o detetive


Jerônimo Teixeira

Hulton Archive/Getty Images
LUZ SOBRE A SORDIDEZ
A polícia de Londres em ação, no século XIX


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Na madrugada de 30 de junho de 1860, Francis Saville Kent, de 3 anos e 10 meses, desapareceu do berço em que dormia na casa de seu pai, o inspetor de fábricas Samuel Kent, em Road, vilarejo do sul da Inglaterra. Seu corpo seria encontrado no fundo de um vaso sanitário, degolado e esfaqueado no peito. A comoção pública que o crime causaria, noticiado por jornais de toda a Inglaterra, é compreensível. O caso trazia todos os elementos para excitar aquele inapelável fascínio mórbido que nos acomete diante de tais situações: a vítima indefesa e inocente, a exposição de detalhes sórdidos de um lar afluente e a possibilidade de que o criminoso pertencesse ao círculo familiar da vítima (o pai e a babá estavam entre os maiores suspeitos). Uma dose extra de interesse foi provida por um investigador da Scotland Yard, Jonathan Whicher, chamado de Londres para deslindar o caso. Minuciosa reconstituição do crime e do ambiente social que o cercava, As Suspeitas do Sr. Whicher (tradução de Celso Nogueira; Companhia das Letras; 432 páginas; 56 reais), da jornalista inglesa Kate Summerscale, apresenta os primórdios de uma categoria profissional que, na literatura do período, já começava a ganhar o status de um mito moderno: o detetive.

Rischgitz/Getty Images
PRODÍGIOS DO SÉCULO
Charles Dickens: um admirador dos pioneiros da Scotland Yard


Whicher foi um pioneiro. Ex-operário que encontrou uma carreira promissora na Polícia Metropolitana de Londres - fundada em 1829 -, desde logo mostrou uma sagacidade excepcional na identificação e captura dos larápios da região que patrulhava. Foi um dos oito escolhidos para integrar a primeira turma de detetives da Scotland Yard, em 1842. Com um conhecimento psicológico acurado dos vigaristas elegantes, ficou famoso por uma série de prisões espetaculares, como a de uma ladra de joias capturada em uma estação de trem, prestes a fazer sua fuga. O escritor Charles Dickens era um grande admirador de Whicher e de seus pares - escreveu reportagens em que descrevia a percepção quase sobrenatural desses detetives, e tomou um colega de Whicher como modelo para um personagem de A Casa Soturna. Mas o assassinato do pequeno Saville tornou-se uma nódoa na carreira de Whicher: ele sustentou a culpa da meia-irmã do menino, Constance, de 16 anos, excêntrica e enciumada filha de um casamento anterior de Samuel Kent. Os indícios que apontavam para Constance eram apenas circunstanciais, e ela saiu inocentada do julgamento. Whicher acabou desacreditado. Desligou-se da Scotland Yard em 1864 - um ano antes de Constance comparecer à polícia para finalmente confessar seu crime (talvez com o intuito de livrar seu irmão William, possível cúmplice do assassinato, de qualquer suspeita).

Dickens e outros autores contemporâneos descreviam os detetives como o equivalente humano do telégrafo, do trem e outros prodígios de então. O detetive seria uma verdadeira máquina de observação, fria e objetiva. De certo modo, é a mesma ideia que fundamenta hoje séries de televisão como CSI: a técnica asséptica seria capaz de impor ordem a um mundo desordenado. O fracasso de Whicher - mais melancólico ainda porque, afinal de contas, ele estava certo - demonstra que os conflitos humanos são, não raro, sujos demais para quaisquer assepsias.


LIVROS

Trecho de As Suspeitas do Sr. Whicher,
de Kate Summerscale

1.Ver o que temos de ver
29-30 de junho

Nas primeiras horas de sexta-feira, 29 de junho de 1860, Samuel e Mary Kent dormiam no primeiro andar de sua mansão georgiana de três pavimentos, situada acima do vilarejo de Road, a oito quilômetros de Trowbridge. Estavam deitados na cama de mogno espanhol com dossel entalhado, no quarto adornado com tecido adamascado carmesim. Ele tinha 59 anos; ela, aos quarenta, estava grávida de oito meses. A filha mais velha deles, Mary Amelia, dormia no mesmo quarto. Do outro lado da porta que dava para o quarto das crianças, a poucos metros, repousavam Elizabeth Gough, 22 anos, babá, numa cama francesa pintada, e duas crianças sob seus cuidados, Saville (três anos) e Eveline (um ano), em berços de ratã.

Duas outras criadas dormiam no segundo andar da mansão de Road Hill - Sarah Cox (22 anos), arrumadeira, e Sarah Kerslake (23), cozinheira - bem como os quatro filhos do primeiro casamento de Samuel: Mary Ann (29), Elizabeth (28), Constance (dezesseis) e William (catorze). Cox e Kerslake compartilhavam a cama num dos quartos. Mary Ann e Elizabeth compartilhavam a cama de outro. Constance e William tinham cada um seu próprio dormitório.

A babá, Elizabeth Gough, levantou-se às 5h30 daquela manhã para abrir a porta dos fundos, permitindo o acesso do limpador de chaminés vindo de Trowbridge. Com seu "aparelho" formado por varas conectadas e escovas ele limpou as chaminés da cozinha e do quarto das crianças, além da tubulação da chapa quente. A babá lhe pagou quatro xelins e seis pence às 7h30 e o acompanhou até a porta. Gough, filha de padeiro, era uma jovem atenciosa, de boa aparência. Magra, tinha pele clara, olhos escuros, nariz comprido. Faltava-lhe um dente da frente. Quando o limpador de chaminés se foi ela limpou a fuligem do quarto das crianças. Kerslake - a cozinheira - lavou o chão da cozinha. Um outro estranho passou na casa naquela sexta-feira, o afiador de facas, para quem Cox - a arrumadeira - abriu a porta.

No terreno em torno da mansão de Road Hill, James Holcombe, jardineiro, cavalariço e cocheiro da família, cortava a grama com uma foice - os Kent tinham uma máquina de cortar grama, mas a ceifadeira era mais eficiente se a grama estivesse úmida. Aquele mês de junho fora o mais frio e úmido já registrado na Inglaterra, e chovera durante a noite. Assim que terminou o serviço ele pendurou a foice num galho, para secar a ferramenta.

Holcombe, 49 anos, sofria de paralisia numa das pernas e contava com dois ajudantes para as tarefas daquele dia: John Alloway, dezoito anos, "um rapaz de ar estúpido", segundo um jornal local, e Daniel Oliver, 49. Ambos residiam no vilarejo de Beckington, nas proximidades. Uma semana antes Samuel Kent havia recusado um aumento de salário para Alloway, e o rapaz pedira as contas. Aquela seria sua penúltima tarde a serviço de Kent, e ele foi despachado pela cozinheira para verificar se James Fricker, encanador e vidraceiro do povoado, havia terminado de colocar um vidro novo na lanterna quadrada do sr. Kent. Alloway já fora buscá-la quatro vezes na semana, sem que estivesse pronta. Daquela vez foi bem- sucedido: trouxe a lanterna de volta e a depositou sobre o balcão da cozinha. Uma moça da cidade de catorze anos, Emily Doel, também trabalhava na casa. Ela ajudava Gough, a babá, a cuidar das crianças, das sete da manhã às sete da noite, todos os dias.

Samuel Kent estava na biblioteca, rascunhando seu relatório sobre a viagem de dois dias aos lanifícios locais, da qual regressara na noite anterior. Ele era funcionário público, passara os últimos 25 anos como subinspetor de fábricas do governo, e recentemente se candidatara a inspetor pleno, reunindo assinaturas de duzentos próceres de West Country - membros do parlamento, juízes leigos, clérigos. Sujeito carrancudo, de sobrancelhas grossas, Kent era impopular no vilarejo, sobretudo entre os habitantes do "canto das cabanas", um amontoado de casebres do outro lado da estrada que conduzia à mansão de Road Hill. Proibira os habitantes do povoado de pescar no rio perto de sua casa, e processou um deles por apanhar maçãs em seu pomar.

Saville, o filho de três anos de Samuel, entrou na biblioteca para brincar enquanto a babá limpava o quarto das crianças. O menino rabiscou o relatório para o governo - fez um garrancho em forma de "s" e um borrão - e o pai brincou com ele, dizendo que era um "menino desobediente". Ao ouvir isso, Saville subiu no joelho de Samuel para "pular". Era um menino forte, corpulento, com cabelos dourados cacheados.

Na tarde de sexta-feira, Saville também brincou com a meia- irmã, Constance. Ela e seu irmão William estavam passando uma temporada que já durava quinze dias em casa, vindos do colégio interno. Constance puxara o pai - musculosa e atarracada, com olhos miúdos semicerrados num rosto largo -, enquanto William parecia com a mãe, a primeira sra. Kent, que falecera oito anos antes: olhos vivos e corpo delicado. Diziam que o rapaz era tímido, e a moça, fechada e instável.

Na mesma tarde Constance foi a pé até Beckington, a 2,5 quilômetros, para pagar uma conta. Lá encontrou William, e os dois regressaram juntos para casa.

No começo da noite Hester Holley, lavadeira residente nos casebres próximos da mansão, bateu na porta para devolver as roupas de vestuário e de cama e mesa dos Kent, que ela lavava semanalmente desde que eles se mudaram para Road, cinco anos antes. As moças mais velhas da família Kent - Mary Ann e Elizabeth - pegaram as roupas dos cestos e as separaram para distribuição nos quartos e armários.

Às sete da noite os três jardineiros e Emily Doel, babá assistente, saíram da casa de Road Hill e foram para suas residências. Holcombe trancou a porta do jardim por fora, ao passar, e voltou para casa, do outro lado da rua. Samuel Kent trancou o portão do jardim depois que todos os empregados não residentes saíram. Restavam doze pessoas na casa para passar a noite.

Meia hora mais tarde Gough carregou Eveline para cima, até o quarto das crianças, e a colocou no berço ao lado de sua cama, de frente para a porta. Os dois berços infantis eram feitos de ratã grosso, forrado de tecido, e tinham rodinhas. Em seguida Gough desceu para dar um laxante a Saville, sob supervisão da sra. Kent. O menino se recuperava de uma indisposição, e o médico da família, Joshua Parsons, enviara um mensageiro à mansão de Road Hill com um "aperiente" - uma derivação do termo latino para "abrir" ou "descobrir" - cujo efeito demorava de seis a dez horas. A pílula "consistia em um grão de pílula mercurial e três grãos de ruibarbo", declarou Parsons, que a preparara pessoalmente.

Saville estava "bem-disposto e contente" naquela tarde, declarou a babá. Ela o pôs no berço às oito da noite, no canto direito do quarto das crianças. Mary Amelia, de cinco anos, foi dormir no quarto dela e dos pais, do outro lado do patamar da escada. As portas dos dois quartos foram deixadas entreabertas para que a babá pudesse ouvir a voz da menina mais velha, caso ela acordasse, e para que a mãe pudesse averiguar se os filhos menores dormiam bem.

Quando as crianças pegaram no sono, Gough arrumou o quarto, repôs um banquinho em seu lugar, debaixo da cama, e restituiu os objetos espalhados ao quarto de vestir. Acendeu uma vela e sentou-se no quarto de vestir para jantar - naquela noite ela comeu apenas pão com manteiga e tomou água. Depois desceu para se juntar aos outros moradores da casa para a oração noturna, conduzida por Samuel Kent. Tomou uma xícara de chá com Kerslake na cozinha. "Normalmente não tomo chá", Gough revelou depois, "mas naquele dia aceitei uma xícara do bule familiar geral."

Quando ela voltou a subir para o quarto das crianças, declarou, Saville estava deitado "do jeito que costuma deitar, de rosto virado para a parede, com o braço sob a cabeça." Ele usava uma camisola de dormir e "uma camiseta de flanela". Em geral ele "dormia profundamente, e como não cochilara naquele dia, dormiu ainda melhor". Ela fizera faxina no quarto durante a tarde, quando ele costumava tirar um cochilo. O quarto das crianças, de acordo com a descrição de Gough, era um lugar confortável, calmo e silencioso, pois a profusão de tecidos abafava ruídos: "O quarto era todo acarpetado. A porta se abria sem barulho, graças ao acabamento em seu contorno, para eu não acordar as crianças". A sra. Kent confirmou que a porta abria e fechava sem ruído, se fosse empurrada ou puxada com cuidado, embora a maçaneta rangesse um pouco quando a giravam. Visitantes posteriores notaram o tilintar de um aro de metal na porta, e o estalido da tranca.

A sra. Kent entrou para dar um beijo de boa noite em Saville e Eveline, depois subiu para tentar ver no céu o cometa que passava naquela semana. Em The Times, jornal assinado pelo marido, sua posição era relatada todos os dias. Ela chamou Gough para acompanhá-la. Quando a babá apareceu, a sra. Kent comentou que Saville dormia tranquilamente. A mãe e a babá foram juntas até uma janela e ficaram olhando para o céu.

O sr. Kent abriu a porta do quintal às dez horas da noite e soltou da corrente o cão-de-guarda, um terra-nova preto grande, mas dócil, de boa índole, que estava com a família havia mais de dois anos.

Por volta das 22h30, William e Constance subiram para dormir, carregando velas. Meia hora depois, Mary Ann e Elizabeth fizeram o mesmo. Antes de se deitar, Elizabeth saiu de seu quarto para verificar se Constance e William haviam apagado a luz. Vendo que os quartos estavam escuros, ela parou na frente de uma janela para ver o cometa. Quando se recolheu, a irmã trancou a porta do quarto delas por dentro.

Dois pavimentos abaixo, por volta das 22h45, Cox fechou as janelas da sala de jantar, do salão, da sala de estar e da biblioteca, trancou e passou o ferrolho na porta de entrada e nas portas que davam para a biblioteca e para a sala de estar. As folhas da janela da sala de estar eram "presas com barras de ferro", declarou depois, "e cada uma tinha duas trancas de latão, também; estava tudo bem fechado". A porta da sala de estar "tinha tranca e fechadura, eu passei a tranca e girei a chave na fechadura". Kerslake trancou a porta da cozinha, da lavanderia e as portas dos fundos. Ela e Cox subiram pela escada traseira, em espiral, usada principalmente pelos empregados.

No quarto das crianças, às onze horas, Gough ajeitou as cobertas de Saville, prendendo-as sob seu corpo, acendeu uma luz de emergência e depois fechou, prendeu a barra de ferro e passou a tranca nas janelas antes de ir para sua cama. Dormiu profundamente naquela noite, alegou, exausta depois de fazer a faxina e se lavar.

Quando a sra. Kent foi para a cama, um pouco mais tarde, deixando o marido na sala de jantar do térreo, ela fechou a porta do quarto das crianças com delicadeza.

Samuel Kent foi para o quintal alimentar o cachorro. Ele dis- se que às 23h30 confirmou que todas as portas e janelas do térreo estavam trancadas e aferrolhadas para evitar a entrada de intrusos, como fazia todas as noites. Deixou a chave na porta da sala de estar, como de costume.

Todos estavam na cama à meia-noite; o núcleo da nova família ocupava o primeiro andar, os filhos do primeiro casamento e os empregados, o segundo.


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