sábado, agosto 22, 2009

A banalização do nazismo no debate político

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Nazismo em todo lugar

Debates públicos corroboram sem parar a Lei de Godwin: quanto mais longa uma discussão, maior a possibilidade de que surja uma comparação com Hitler para sepultar a argumentação real


Jerônimo Teixeira

Fotos Darren McCovester/AFP e Yves Herman/Reuters
BANALIZAÇÃO
Protestos comparam Obama (à esq.) e Bush a Hitler

Admirador da obra do italiano Primo Levi, escritor que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, o advogado americano Mike Godwin participava, em 1990, dos grupos de discussão da rede Usenet, espécie de antepassada da internet, e irritava-se com a leviandade com que os debatedores recorriam a analogias com o nazismo para desqualificar o argumento dos adversários. Foi então que ele cunhou a Lei de Godwin: "À medida que uma discussão on-line se alonga, a probabilidade de uma comparação envolvendo Hitler ou o nazismo se aproxima de 1". (Na linguagem matemática da probabilidade, 1 equivale a 100%.) Godwin fez uso paródico da matemática com o objetivo de alertar para a banalização do nazismo. E, embora a lei por si só não estabeleça juízos sobre o valor de comparações com o regime de Hitler, ela sugere, sim, que esse expediente desqualifica a discussão. Afinal, de que adianta ir em frente se uma das partes está disposta a vencer pelo autoritarismo, ou até mesmo pela violência? No Brasil e no mundo, os debates públicos não se cansam de corroborar a Lei de Godwin.

Um dos exemplos mais patéticos foi o discurso proferido por José Sarney no Senado, na segunda-feira passada. O senador e ex-presidente acusou o jornal O Estado de S. Paulo de conduzir uma "campanha sistemática" contra sua honra – "uma prática nazista", idêntica àquela que conduziu os judeus à câmara de gás. A recente proibição do fumo em lugares públicos de São Paulo também foi qualificada de nazista, na imprensa e na internet (e o mesmo vem se dando nos debates sobre o combate ao cigarro na Espanha). É uma falácia: os nazistas reprimiram o fumo – mas não se segue daí que todo governo que instaure legislação similar vá se engajar em políticas de extermínio racistas.

Nos Estados Unidos, o debate sobre a reforma do sistema de saúde proposta pelo governo Obama validou a Lei de Godwin quando se espalhou o boato de que a proposta incluiria a eutanásia. A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, democrata, ficou melindrada ao ver, em manifestações de rua, imagens de Obama e outros próceres de seu partido com suásticas e bigodinhos aus-tría-cos – mas ela não demonstrava a mesma indignação quando fotos de Geor-ge W. Bush apareciam com o figurino do führer nos protestos contra a Guerra do Iraque. Em qualquer dos casos, falar em nazismo revela uma monstruosa falta de senso de medida: nem a reforma da saúde prevê a eliminação dos mais fracos, nem a invasão do Iraque incluía planos genocidas. Na mesma linha, perdem a proporção e a razão os críticos de Israel que acusam os judeus de repetir em Gaza as políticas de extermínio com que os nazistas vitimaram seus antepassados.

O presidente do STF, Gilmar Mendes, há pouco comparou os presídios brasileiros a campos de concentração. O que se pretendia uma denúncia das péssimas condições carcerárias resultou apenas em um enfeite retórico. Como lembra o filósofo Roberto Romano, as palavras, como a moeda corrente, estão sujeitas à inflação. É comum que termos políticos percam o sentido e o valor pelo uso indiscriminado: fascista, neoliberal, republicano, cidadania. O nazismo, contudo, marca o paroxismo do Mal na história moderna. Foi um episódio extremo – e perde-se muito em vulgarizar o conceito.