quinta-feira, julho 23, 2009

Miriam Leitão Carne com crime

 O GLOBO 

O BNDES é réu em ação no Pará porque é sócio da Bertin, um dos vários frigoríficos processados pelo Ministério Público por comprar gado de área de desmatamento. Ontem, o BNDES anunciou uma série de exigências ao setor de carne, mas com prazos longos. Só em 2012 exigirá rastreabilidade de seis meses do rebanho; só em 2016 exigirá rastreabilidade desde o nascimento.

A Nike ontem anunciou que não compra couro de gado proveniente do bioma Amazônia, até que haja "um sistema de governança confiável".

O Wal-Mart anunciou na segunda-feira que nem com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pelos frigoríficos com o MP do Pará, a rede retomaria as compras. Exige uma auditoria independente para voltar a confiar nos fornecedores.

O cerco se fecha, o mercado pressiona, empresas que querem zelar pela sua imagem não querem aparecer como sócias do desmatamento da Amazônia.

Tudo isso teve origem no trabalho do Ministério Público do Pará. Um trabalho lento, minucioso, difícil. Começou há quase três anos, no meio da ausência absoluta de informação. O Ibama fiscalizava, autuava e multava. Em geral, o que aparecia era um laranja. O MP processava um por um, mas a lei permite que a pessoa saia pagando uma cesta básica. O MP tentou saber coisas simples como onde estava o gado do Pará, quem era dono de cada fazenda.

Mas nada era fácil.

— Nos cartórios, as informações mostram propriedades que somadas dão três vezes o estado do Pará.

Não há nenhum órgão público com informação organizada sobre os produtores, quem são, onde eles estão, limites da fazenda — disse o procurador Daniel César Azeredo Avelino, que está à frente do caso.

Surgiu a ideia de ir pela cadeia produtiva, tentando saber quem comprava das fazendas embargadas pelo Ibama. O fio da meada foram os documentos de Guia de Transporte de Animal (GTA) da Secretaria de Fazenda: — As GTAs são guias em papel, precárias, com cópia feita com carbono e tudo o que o vendedor do gado tem que informar é o CPF do proprietário, nome da fazenda e quantidade de bois.

Começamos analisando esses documentos de carbono apagado, gastamos um ano analisando 100 mil GTAs. Depois, cruzamos isso com os ilícitos ambientais.

São 2.300 fazendas embargadas pelo Ibama.

O governo do Pará havia lançado o Cadastro Rural Ambiental, em que o produtor tinha que registrar nome, documentos, a fazenda e suas coordenadas. Nem precisava de georeferenciar. Das 110 mil fazendas do estado, só 600 aderiram a esse pedido de informação porque a Federação da Agricultura do Pará (Faepa) orientou que elas não dessem os dados: — Elas preferiram ficar invisíveis aos olhos do estado e por incentivo dos representantes de classe.

O MP então procurou os frigoríficos e outros clientes que compravam das fazendas que estavam na lista dos que desmatavam. Foi assim que se chegou aos grandes supermercados, a Bertin, Minerva, Frigol, e outros 11 frigoríficos, Sadia, Perdigão, Seara, Vulcabras-Reebok. O MP recomendou às empresas que não comprassem de fazendas embargadas e dos frigoríficos que compram delas, sob o risco de responder solidariamente pelo crime.

Enquanto isso, o Greenpeace lançou seu estudo de todos os outros estados amazônicos denunciando outros grandes frigoríficos como Marfrig e Friboi, Quatro Marcos.

O BIRD anunciou a suspensão de um financiamento a Bertin. Marfrig anunciou que não compraria de pecuaristas que desmatassem.

Os supermercados suspenderam a compra de carne de frigoríficos envolvidos nesse assunto. Eles então procuraram o Ministério Público para fazer um Termo de Ajustamento de Conduta. Os supermercados falaram em voltar a comprar, mas o WalMart disse que só o faria depois da contratação da auditoria independente para ter certeza de onde vem a carne.

O procurador concorda.

— A auditoria independente é fundamental. No Mato Grosso, por exemplo, os produtores têm licenciamento ambiental e o estado é campeão de desmatamento. Nós não queremos, no Pará, apenas cumprir formalidades.

Nada foi simples. Nas audiências públicas realizadas com a Câmara e o Senado os defensores do ruralismo disseram algumas barbaridades.

O deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) disse e repetiu uma frase estranha: — Dr. Daniel, o senhor é jovem e teria um belo futuro pela frente.

Disse que foi ao procurador geral com a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) e Demóstenes Torres (DEM-GO) reclamar da ação dele. Admitiu que ouviu que o procurador tinha autonomia.

Lupion disse que pediria o afastamento do procurador e que os produtores haviam tomado a decisão de processálo por abuso de poder, quebra de sigilo fiscal de empresas.

Acrescentou que ninguém poderia exigir a rastreabilidade do rebanho: — Vamos às últimas consequências contra quem quiser obrigar os produtores, ninguém pode ser obrigado a fazer a rastreabilidade do rebanho.

O único documento que eles têm que ter é o Guia de Transporte Animal.

É assim a lavoura brasileira.

Arcaica ainda e lutando para continuar arcaica. Felizmente alguns começam a mudar. Mas a pressão do consumidor será a grande arma para que o país não tenha que continuar engolindo carne com crime.

Com Alvaro Gribel