FOLHA DE S. PAULO
Os Brics são unânimes em querer mais poder no FMI, mas não são harmoniosos na questão agrícola na OMC
"COMO EXPLICAR a desordem do mundo?", a frase de Gustavo Corção foi um dos temas que o embaixador João Guimarães Rosa nos propôs no exame de ingresso ao Itamaraty meio século atrás, em 1958. A desordem, a ausência de autoridade central, aprendi mais tarde, caracterizava o sistema internacional, o que um clássico da disciplina, Hedley Bull, intitulou "A Sociedade Anárquica".
Por um par de anos após o fim da URSS criou-se a falsa impressão de que algum tipo de "ordem" podia ser imposta pelo poder unilateral dos Estados Unidos. Contudo, a somatória do desastre do Iraque, do colapso da ordem econômica e do fracasso em liquidar o terrorismo marcou os limites do poder norte-americano.
Obama herdou poder debilitado por muitos golpes simultâneos. O ponto de partida de sua estratégia é uma posição de fraqueza, talvez temporária: a necessidade de reconstruir o poder e a vontade.
Enquanto a tarefa não se conclui, a última coisa que deseja é envolver-se em nível mais grave de conflito com a Coreia do Norte e o Irã. Ou tomar iniciativa internacional que exija engajar as reservas de poder que lhe restam. Não é apenas por livre opção e convicção idealista que o novo governo se mostra amistoso, conciliador, multilateralista, modesto em deixar a outros o centro do palco. É também porque precisa "fazer da necessidade uma virtude". Esse semivácuo de poder favorece a ressurreição de agrupamentos desejosos de ocupar espaço: G7, G8, G20, Brics etc.
O que todos eles pretendem é contribuir para o que se chama de "governança" do mundo. Não é que o mundo careça de governo ou leis, embora imperfeitas e incipientes. O que seriam o sistema das Nações Unidas, com a ONU propriamente dita, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio (OMC), os organismos especializados, suas constituições, convenções, tratados?
A questão é que essas organizações são vistas como ingovernáveis, incapazes de tomar decisões efetivas pelo tamanho (a Assembleia Geral da ONU tem 193 membros) ou pelo caráter não representativo de órgãos como o Conselho de Segurança.
Tenta-se assim escapar para grupos menores, supostamente coesos, onde se definiriam consensos a serem convertidos em decisões nas instituições competentes. É como se, diante da disfuncionalidade do nosso Congresso, decidíssemos partir para grupos pequenos de governadores ou partidos poderosos, a fim de resolver impasses na reforma tributária ou previdenciária. Estou vendo daqui o sorriso de ceticismo de nossos leitores. O que ele me diz é que o problema maior não está tanto nos defeitos de desenho e funcionamento do Congresso, apesar de numerosos, mas nas divergências profundas sobre a própria substância das matérias.
O mesmo ocorre na vida internacional. É isso que explica porque viram letra morta os compromissos do G-20 para concluir a Rodada Doha de comércio ou evitar o protecionismo. Ou porque o G7 se desmoralizou após décadas de fiasco em coordenar os mais ricos acerca de medidas para evitar crises econômicas, ajudar a África ou concordar sobre a invasão do Iraque.
Não se pense que será diferente com os Brics, unânimes em querer mais poder no FMI, mas não tão harmoniosos em agricultura na OMC, no ingresso da Índia e do Brasil no Conselho de Segurança ou em utilizar o foro para abrir o mercado russo à carne suína do Brasil.