domingo, junho 21, 2009

No centenário de Isaiah Berlin Celso LafeR

O ESTADO DE S PAULO


Isaiah Berlin nasceu em 6 de junho de 1909 em Riga, na Letônia, que na época era parte do Império Russo. Faleceu em 7 de novembro de 1997, na Inglaterra, onde viveu desde os 14 anos e onde se formou. Estudou em Oxford e tornou-se, no correr dos tempos, um mestre ícone daquela universidade e um intelectual cercado de respeito e reconhecimento.


Esse reconhecimento transcendeu o meio universitário e a sociedade inglesa, pois a irradiação da sua obra e a sua personalidade fizeram dele um intelectual público com impacto no debate das ideias em muitos países, inclusive no nosso. Para isso muito contribuíram o seu talento de expositor e os seus méritos de escritor. Daí a pertinência, no centenário do seu nascimento, de considerações sobre o percurso de um pensador que se via como integrante da tradição inglesa de rigor filosófico e tolerância liberal, permeada pelo influxo de suas origens russas e raízes judaicas.

Sir Isaiah, escrevendo sobre Tolstoi e evocando um verso de Arquíloco, sugeriu um critério para classificar e diferenciar escritores e pensadores. Existem os ouriços, que relacionam tudo a uma visão unitária e coerente, organizadora de um conhecimento que articula uma perspectiva centrípeta e monista da realidade. Existem as raposas, que se interessam por várias coisas, perseguem vários fins e objetivos, por vezes não relacionados, que, dessa maneira, desenvolvem uma perspectiva centrífuga e pluralista da realidade. Dante, Platão e Hegel integram a família dos ouriços. Shakespeare, Aristóteles e Montaigne, a das raposas.

Isaiah Berlin é da família das raposas. A multiplicidade dos seus temas revela um raro domínio de muitas culturas: a anglo-americana, a russa, a francesa, a alemã, a italiana. Por isso, soube tratar tão bem de movimentos culturais como a Ilustração e o Romantismo e de conceitos como verificação, igualdade, nacionalismo. Um dos seus estudos mais difundidos tem como base a distinção entre liberdade negativa (liberdade como não-interferência) e liberdade positiva (liberdade como participação na definição de fins coletivos). Elaborou argutos perfis de Churchill, Franklin Roosevelt, Chaim Weizmann. Apreciava poesia e gostava de música. Dedicou um belo ensaio à explicação da grandeza e da permanência da obra de Verdi. No campo da história das ideias, que foi, por excelência, a sua área acadêmica, escreveu sobre autores muito díspares nos seus propósitos e na sua filiação política. Entre eles, Maquiavel, Vico, Herder, Montesquieu, Hume, Marx, Stuart Mill, Sorel, Joseph de Maistre, Herzen, Bakunin, Austin.

Nesse campo a contribuição de sir Isaiah é excepcional. Com rigor e sutileza, associa a fascinação pelo papel das ideias e seu impacto positivo ou negativo na realidade a um temperamento analítico liberal. Este propicia uma atitude não dogmática e uma capacidade crítica de avaliar o que está indo, e por quê, contra ou a favor da maré. Daí a originalidade e a qualidade das suas leituras, que alargam o entendimento da relação entre as ideias e a realidade, com o mérito adicional de não politizar a cultura por via do patrulhamento ideológico, pois explora com civilidade em que medida a cultura pode ampliar o espaço do diálogo.

Sir Isaiah, no entanto, não é um relativista, com superior empatia e tolerância para entender o pensamento do Outro. Entender, para ele, não é endossar. É apontar que, se as ideias não são bem compreendidas, os seres humanos delas podem ser vítimas, mais até do que de forças incontroladas da natureza ou do funcionamento das instituições. Por isso, a grande dicotomia organizadora de suas preferências é a dicotomia monismo/pluralismo, para a qual aponta a metáfora ouriço/raposa. Com efeito, para sir Isaiah o monismo dos ouriços pode trazer riscos à vida social e política, com as suas certezas e com as suas impositivas afirmações sobre a direção da História e sobre valores absolutos. Daí a sua simpatia pelo pluralismo das raposas que lidam com a variedade histórica, a multiplicidade dos métodos de acesso ao conhecimento, a diversidade do sentido da História e o politeísmo dos valores.

O pano de fundo da reflexão de sir Isaiah são as experiências totalitárias do século 20 e o monismo das ideias que sustentaram os extremos e os horrores na Alemanha nazista e na Rússia comunista. Daí a limpidez analítica com que argumenta a inexistência de uma "chave" monista apta a desvendar e dominar a realidade. "A História não tem libreto", dizia Herzen, um dos seus autores prediletos. Por isso, conclui que a busca das condições de uma sociedade decente, voltada para enfrentar a injustiça e estender a liberdade, requer lidar com a realidade sem o apoio do corrimão de sistemas monistas.

Daí deflui o interesse de seus estudos sobre o sentido da realidade política e as características tanto do juízo político quanto dos tipos de liderança. É importante aproximar-se da realidade sem as distorções produzidas pelos sentimentos ou por uma disposição para idealizá-la ou depreciá-la. Cabe não identificar o conhecimento organizado e sistematizado dos fatos, das tendências e das forças sociais com a sua compreensão. Por isso, o juízo político não é a aplicação de uma regra geral a uma situação concreta. É a capacidade de vislumbrar as características únicas de cada situação e conjuntura com a sagacidade de perceber o que pode ou não pode ser feito numa dada situação, com que custos e com quais parceiros. Foi o que fizeram Roosevelt, Lincoln, Bismarck, Cavour, Weizmann, de maneira mais duradoura e com menos custos do que Robespierre e Lenin.

A lição de Isaiah Berlin é o amadurecido fruto de um sutil olhar liberal, sensível à dor humana no século 20, voltado para uma sociedade decente que ilumina a negatividade dos dogmatismos intolerantes que continuam, lamentavelmente, presentes na atmosfera política dos nossos tempos.