O GLOBO
Se uma coluna de economia vai abordar uma crise política, espera-se que ela pondere que a paralisia legislativa, decorrente do escândalo, seja ele qual for, impede decisões que ajudarão a enfrentar problemas econômicos. Mas não é isso que direi. Por um motivo simples: o governo não fez qualquer plano para enfrentar a crise internacional. Segue dando deduções de impostos à sua clientela.
Não há qualquer reforma significativa para se construir uma ponte a uma outra etapa da atividade econômica. Outras crises serviram para avançar. Esta não. O Congresso obviamente não vai votar nada de importante. Se quisesse, haveria reforma tributária realmente relevante para votar? Haveria modernização das relações trabalhistas para criar mais emprego formal? Haveria mudança na estrutura da Previdência que permitisse ao país reduzir o temor de colapso do sistema, diante do inevitável envelhecimento da população? Nada disso está sendo proposto.
O Congresso está minado. Há propostas para aumentar a área a ser desmatada da Amazônia; há um movimento para derrubar um veto presidencial que pode custar R$38 bilhões ao Tesouro; há uma negociação para acabar com o fator previdenciário, a meia sola que foi feita quando não se conseguiu fazer uma reforma da Previdência.
Esta crise política não é importante por razões econômicas, apesar de acontecer no meio de uma turbulência global. Ela é importante porque é política. E porque parece ter aprisionado o país num beco sem saída. O que fazer quando falta um ano e meio para eleições gerais e o Senado não se aguenta em pé? Esta semana caiu mais um diretor-geral da Casa, e as denúncias continuam diárias.
Por não haver saída, os escândalos na dimensão que aconteceram transformaram-se em crise institucional. E não há saída visível. No parlamentarismo, o primeiro-ministro poderia convocar eleições gerais.
O senador José Sarney (PMDB-AP) disse na semana passada um pedaço da verdade. A crise é do Senado, de fato. A outra parte da frase é falsa porque a crise é dele também. Dos dois. Difícil separa-los, pelo fato de Sarney estar na terceira presidência, pelo fato de ele ter pendurado parentes, contraparentes, amigos, parentes de amigos nos vários galhos dessa frondosa árvore. Porque Agaciel Maia é cria dele. Sarney é um símbolo tão completo da compulsão de tomar como privada a coisa pública que parece caricatura.
O que faz um homem rico, que tem uma ilha, uma mansão em frente ao mar e um sítio em área valorizada, aceitar "auxílio-moradia"? O que o faz, tendo empresas repletas de cargos e salários a preencher, pendurar sua parentela no Senado? É tão antiga essa compulsão que em 1986 a imprensa já publicava que a então jovem e sem mandato Roseana Sarney conseguira um emprego no Senado sem ter feito concurso (vejam no bloghttp://www.miriamleitao.com/).
O que espanta é a falta de necessidade de tudo o que Sarney fez. Se ele precisasse e fizesse uso privado da coisa pública já seria um erro. Não precisando, é bizarro. O presidente Lula sugeriu que olhássemos o passado do senador. Ele tem um passado marcante. Por 25 anos foi um dos biombos civis de um regime que matou, torturou, censurou, cassou, fechou Congresso, e rasgou a Constituição. Sarney permaneceu fiel a ele. Esse é o passado que o distingue.
O que torna também sua biografia diferente é que ele teve uma saída honrosa. A história, generosa, pôs na frente dele uma porta de saída e ele se tornou o primeiro presidente civil e teve chance de ajudar a construir as instituições democráticas. A honra não lhe coube por méritos, mas pela fatalidade. Sarney tomou algumas decisões valiosas, outras nem tanto. Destacaria três feitos: o fim da conta de movimento do Banco do Brasil, que foi o primeiro passo para o avanço fiscal no país; a criação da Secretaria do Tesouro; a criação do Ibama. Seu programa do leite era puro assistencialismo, mas melhorou a saúde de milhões de crianças. Seu melhor programa de estabilização foi perdido por sua incapacidade de fazer o necessário ajuste fiscal.
Seria mais uma presidência, com erros e acertos, mas o que pesou contra foi sua insistência num quinto ano de mandato.
Até isso teria se desculpado se, ao final da extrema e imerecida honra de presidir o Brasil, tivesse ido tratar de bons afazeres, de preferência ajudando a resgatar o seu Maranhão do destino de pobreza, desigualdade e analfabetismo que o aprisiona desde sempre.
Não com cargos políticos, mas com doação do seu tempo e energia. Mas ele permaneceu no poder e foi neste tempo, de lá para cá, que montou as bases do atual compadrio, dos atos secretos, dos desvios inaceitáveis dos quais tantos senadores se aproveitam.
O Senado está doente. O país não se sente mais representado pelo Congresso. As iniciativas de reforma política são grotescas pelo despropósito. O voto em lista que vez por outra ronda a vida nacional é o aprofundamento da rapinagem. O roubo seria do próprio voto. O Senado que pense em propostas construtivas como a de acabar com o suplente, esta excrescência só comparável aos biônicos e que hoje domina pelo menos 20% da Casa. A crise do Senado e dos senadores é profunda. Séria. Incomum.