O GLOBO
Quem o conhece sabe que o presidente Lula não prega prego sem estopa ou, usando uma imagem dos portugueses no Brasil Colônia, Lula costuma "sangrar em saúde", um hábito naquele tempo para prevenir doenças, quando a sangria era remédio para tudo. Portanto, quando Lula diz, como fez recentemente, que um Estado com carga tributária pequena não tem condições de fazer políticas sociais, defendendo a alta carga tributária brasileira de cerca de 40% do PIB, o que ele está fazendo é se adiantando às críticas que certamente receberá pela situação das contas nacionais, cada vez mais perigosamente descontroladas.
O aumento do funcionalismo, previsto para entrar em vigor em julho, terá um impacto ainda este ano de R$29 bilhões nas despesas, e as indicações são de que o governo manterá o reajuste, mesmo diante da crise.
Especialistas acreditam que o governo já havia perdido o controle da despesa mais importante, que é justamente a de pessoal, antes mesmo da crise, que veio arranjar uma justificativa para aumentos acima da capacidade de arrecadação, como se fizessem parte de uma política contracíclica.
O que se esperaria diante da crise é que houvesse um movimento forte de investimento, e o que aconteceu é que eles perderam o controle do custeio.
As decisões anunciadas ontem seguem o modelo de desoneração de impostos para alguns setores que movimentam mais a economia, como os eletrodomésticos e a indústria automobilística, mas com a novidade de dar incentivos ao investimento, que não havia sido contemplado pelo governo desde o início da crise. Mesmo assim, o grosso dos incentivos vai para a desoneração dos bens de consumo, ficando apenas a menor parte, cerca de 10%, para para máquinas e equipamentos.
Quem investe mais no país são estados e municípios, assim como são eles os que investem mais em educação e saúde. Para se ter uma ideia, o total investido pelos três níveis de governo no ano passado ficou em torno de R$67 bilhões, e apenas 21% foram executados pela União.
O total de obras realizadas, e de equipamentos comprados pelos municípios, foi mais que o dobro do que gastou o governo federal. Dados oficiais mostram que os estados fazem o dever de casa, ao contrário da União.
O superávit primário dos estados vem sendo semelhante ao da União, apesar de a receita deles ser mais de 60% inferior à federal, fato que nunca havia acontecido antes.
A situação registrada no primeiro bimestre do ano, no auge da crise, única desde que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi editada, em 2000, está pouco alterada até maio.
Ano passado, o superávit nos primeiros dois meses do ano foi de 4,7% do PIB, e este ano foi de 1,2%. O superávit do governo central até maio ficou em 1,27%, quando a meta era de 1,4%.
O investimento federal cresceu 25% nos últimos meses, mas vinha de uma base muito pequena. Além do mais, o custeio cresceu 23%, e o gasto com pessoal cresceu 17%, o que demonstra quais são as prioridades do governo.
A crítica que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, fez aos governadores de maneira geral, e em especial ao governador de São Paulo, José Serra, na abertura da solenidade de anúncio das novas medidas, mostra bem como o governo não está brincando com a questão eleitoral.
Com a queda do ICMS devido à crise, alguns governos estaduais anteciparam o pagamento de tributos para recompor seus caixas, e ontem o ministro Mantega criticou a medida, dizendo que ela não ajuda a superar a crise.
Foi uma resposta ao discurso do dia anterior do governador de São Paulo, potencial candidato do PSDB à Presidência na sucessão de Lula, que acusou o governo de não ter uma política de crescimento para o país para enfrentar a crise.
O problema é que mais um "pacote de bondades" distribuído ontem pelo governo, sem que se saiba de onde vai sair o dinheiro para bancar isso, deixa a oposição em uma verdadeira saia justa, pois o discurso do governo agrada aos dois grupos, tanto o do Bolsa Família quanto o da Bolsa de Valores.
O fato é que, diante de uma tendência fiscal muito frouxa, o mercado financeiro continua achando que está tudo bem, acreditando que dá para levar nessa toada até o próximo governo, em 2011.
A relação dívida/PIB cresceu porque a Petrobras saiu das contas públicas, e a aposta do governo é que a situação melhorará com a redução dos juros.
Mas o receio de que o governo venha a ter necessidade de aumentar novamente os juros em médio prazo, para segurar uma alta da inflação previsível pelos gastos crescentes, fez com que os juros futuros para 2011 já subissem ontem na Bolsa.
A arrecadação tributária caiu 11,4% graças à desoneração do IPI, a compensações de tributos como a Cide, à queda da lucratividade das empresas e ao arrefecimento brusco da atividade econômica e da produção industrial. E deve cair mais ainda com as novas reduções anunciadas ontem.
O superávit primário, segundo analistas econômicos, tem que chegar a 2,5% este ano, descontando 0,5% do PPI, e voltar a 3% do PIB no ano que vem, para que o equilíbrio fiscal não se perca.
De qualquer maneira, seja quem for o sucessor de Lula, ele quase certamente receberá uma verdadeira "herança maldita", com compromissos permanentes de aumentos salariais e a necessidade de cortar custos de um Estado que cresceu muito sem a contrapartida de serviços mais eficientes, apenas programas assistencialistas.