O GLOBO
Quando o senador José Sarney disse que não fora eleito presidente do Senado "para ficar submetido a cuidar da despensa, ou limpar as lixeiras da cozinha da Casa", além de revelar uma postura elitista, estava, intencionalmente, pois se trata de um intelectual, se referindo ao que Antonio Gramsci chamava de "pequena política", a política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas. Em contraposição à "grande política", que é o que Sarney disse que lhe cabia fazer, "comandar politicamente a Casa". O blog Democracia e Novo Reformismo, de Gilvan Cavalcanti de Melo, ligado ao PPS, publicou ontem um texto de Antonio Gramsci que fala da pequena e da alta políticas que tem tudo a ver com nosso momento atual.
A "grande política", segundo Gramsci, compreende, entre outras funções, "a luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais". Já a pequena política trata, dizia Gramsci, das "questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política".
Justamente o que há no Senado no momento é uma disputa entre grupos de políticos e burocratas que vivem dessa "pequena política", e o senador Sarney nunca foi alheio a ela.
Ao contrário, foi ele quem, em 1995, quando presidiu o Senado pela primeira vez, nomeou Agaciel Maia como diretor-geral da Casa, cargo em que este permaneceu até que os escândalos jogados para baixo do tapete azul do Senado estourassem irremediavelmente, revelando uma casta de burocratas milionários acobertados por políticos, que por sua vez eram acobertados pelos burocratas.
Os "decretos secretos" têm essa origem: Agaciel Maia e seus asseclas escondiam nomeações, demissões, faziam favores aos senadores permitindo que ultrapassassem suas cotas, que usassem indevidamente apartamentos funcionais, sem que as evidências fossem publicadas à luz do dia.
Mas eles ficavam com as informações, e passaram também a se utilizar desses decretos para nomear seus próprios protegidos, muitas vezes à revelia dos próprios senadores, como revela o caso de Demóstenes Torres.
Por isso é que Agaciel Maia já disse que nenhum senador pode alegar que não sabia dos atos secretos, pois, segundo garante, todos aceitaram que assim fosse.
O poder burocrático cresceu tanto que mesmo os empréstimos consignados para os funcionários eram controlados por eles, que impunham uma taxa de juros que podia chegar a 4% ao mês, e ficavam com uma parte. Uma das primeiras medidas da nova administração foi baixar a taxa para 1,6% ao mês.
O senador Heráclito Fortes, primeiro-secretário da Mesa do Senado e, a partir de terça-feira, principal responsável pela apuração das irregularidades que vêm sendo reveladas desde o início do ano — quando uma disputa entre PT e PMDB levou pela terceira vez à presidência da Casa o senador José Sarney —, é um homem cosmopolita, mas um político nordestino espirituoso, que faz questão de usar expressões regionais para definir certas situações.
Ontem, por exemplo, para tentar minimizar o que pode ser o mais novo escândalo, com o descobrimento de contas do Senado fora da contabilidade oficial, disse que elas poderiam ter uma explicação prosaica ou significar mesmo um grande escândalo.
E advertiu: "Cachorro mordido de cobra tem medo de salsicha".
Pois, para usar um linguajar muito próprio dos políticos, especialmente os nordestinos, para definir a situação atual do Senado, podese dizer que ela está tão confusa a ponto de "vaca não reconhecer bezerro".
Ao abrir mão de tratar dessas "questões pequenas", como se elas não fizessem parte fundamental de sua atuação política, Sarney vai perdendo aos poucos a autoridade do cargo, pois deixa claro que não tem condições de se afastar de seu "afilhado", o diretor-geral afastado Agaciel Maia.
Todos os movimentos acontecidos até o momento têm uma única finalidade, a de tentar desmontar o esquema Agaciel. A tal ponto que o senador Heráclito Fortes preferiu escolher dois funcionários que levantaram suspeitas por suas ligações funcionais, mas que têm uma vantagem inestimável hoje: são adversários de Agaciel Maia.
Há, no momento, três grupos de burocratas no Senado em disputa pelo butim de R$ 2,7 bilhões de orçamento: o grupo de Agaciel Maia, o que quer derrubar esse grupo e um terceiro, que espera ficar com as sobras dessa disputa.
O novo diretor-geral, Haroldo Tajra, servidor de carreira, é um piauiense como Heráclito e primo de ninguém menos que o seu suplente, Jesus Tajra. Para a área de Recursos Humanos, foi nomeada Dóris Romariz Peixoto, que já chefiou o gabinete de Roseana Sarney.
O primeiro-secretário Heráclito Fortes sabe que a impressão na opinião pública não foi boa, mas garante que precisava buscar no grupo contrário a Agaciel os funcionários para desfazer o verdadeiro império que ele montou.
Existe hoje cerca de uma centena de gestores dos contratos e terceirizações — onde se suspeita de muitas irregularidades —, todos eles nomeados e treinados por Agaciel Maia nesses 15 anos de poder.
Poder tamanho que, mesmo afastado das funções, ele continua a frequentar o Senado e a usar sua sala, de onde continuava a fazer sua "pequena política". Ontem foi nomeado um servidor para ocupar aquela sala, na tentativa de dificultar a presença física de Agaciel Maia no Senado.
Como diz um antigo ditado político, desta vez mineiro, e não nordestino, a esperteza, quando excessiva, engole o esperto. É o que está acontecendo no Senado.