O GLOBO
Dependendo do que vier a acontecer nos próximos dias, o senador José Sarney corre o risco de perder o apoio político do DEM, o que pode significar um baque definitivo na sua resistência em deixar a presidência do Senado em meio à crise que vai se revelando ser cada vez mais sua, ou pelo menos ter nele uma figura central. É uma ironia do destino que a prática do nepotismo que caracteriza a atuação política dos Sarney tenha como símbolo o próprio neto, batizado de José Sarney Neto e que, por vontade própria, aos 20 anos mudou seu nome para José Adriano Cordeiro Sarney.
Se, como os adversários políticos do avô comentam, ele mudou de nome por vergonha, esse sentimento se dissipou com o tempo, pois hoje, aos 29 anos, não se envergonhou de entrar no negócio de crédito consignado no Senado e em outros órgãos públicos, onde o sobrenome pesa mais que os títulos acadêmicos.
Nepotismo deriva do latim nepos, que pode significar tanto neto como sobrinho. Indica a posteridade de maneira geral, e o sentido se deve aos Papas da Igreja Católica que tinham o hábito de conceder cargos a parentes mais próximos.
Nos tempos modernos, é associado à conduta de funcionários públicos que fazem concessões a familiares.
Dizer que o rapaz é muito bem formado, "com mestrado na Sorbonne e doutorado em Harvard", como disse Sarney em uma curta nota oficial, não explica nem as aptidões do neto, que com um currículo desses deveria estar em posto mais elevado na carreira de economista, mas, sobretudo, não diz nada sobre o aspecto moral da questão, que é o que importa.
Mais uma vez a mistura entre o público e o privado aparece na prática política da família Sarney, que já tinha no recente rol de escândalos um "serviçal" de Roseana empregado como chofer no Senado, ganhando RS 12 mil, e diversos parentes empregados em gabinetes de correligionários, inclusive outro neto, numa prática de nepotismo cruzado muito em voga no Senado e na Câmara e também no sistema judiciário, que em boa hora proibiu a prática.
Como sempre acontece no Brasil quando algum político é apanhado em irregularidade, ele coloca sempre a teoria da conspiração para funcionar. Foi assim quando Renan Calheiros tentava resistir às denúncias para permanecer na presidência do Senado, e passou a difundir a tese de que sua saída seria prejudicial ao governo Lula, que seria na verdade o alvo dos ataques.
O mesmo faz Sarney, que ontem disse que sofre uma "campanha midiática" por sua posição política, "nunca ocultada", de apoio ao presidente Lula e a seu governo. Sarney tem feito análises políticas sobre a situação, colocando em segundo plano as falcatruas e irregularidades que vêm sendo denunciadas nos últimos meses.
Lamenta-se dizendo que se soubesse que o PSDB iria apoiar a candidatura de Tião Viana, do PT, não teria se candidatado, atribuindo à oposição derrotada e à parte do petismo suas atuais atribulações.
Apoiado por um presidente Lula que não mede esforços para demonstrar sua lealdade pessoal, o senador Sarney não tem, porém, o apoio irrestrito nem no seu partido, o PMDB, de onde veio o pedido mais forte para que se licencie do cargo, através do senador Pedro Simon, nem do grupo do PT que apoiou o senador Tião Viana.
Já perdeu apoios individuais dentro do próprio Democratas, onde o senador Demóstenes Torres também pediu sua saída, pelo menos para que o ex-diretor-geral do Senado, Agaciel Maia, seu protegido, possa ser investigado livremente.
O primeiro-secretário Heráclito Fortes, que acabou assumindo o papel principal das apurações burocráticas relativas a decretos secretos e outras falcatruas envolvendo crédito consignado e terceirizações de toda ordem, no que parece ser um esquema fraudulento de alto calibre organizado dentro do Senado, é uma voz solidária a Sarney dentro do DEM, mas não encontra bons argumentos e corre o risco de morrer afogado abraçado a ele.
O presidente do DEM, deputado Rodrigo Maia, já anunciou que seu partido não está disposto a "defender o indefensável", categoria em que coloca a atuação do neto de Sarney no crédito consignado do Senado.
Não é previsível que o DEM venha a abandonar de vez Sarney, devido aos vínculos históricos que o unem ao partido, oriundo do antigo PFL, criado por Sarney e outros dissidentes do PDS que romperam com o regime militar e aderiram à candidatura de Tancredo Neves à Presidência, viabilizando-a politicamente.
Como essa, teve várias chances de recuperar a imagem de modernizador que o levou pela primeira vez ao governo do Maranhão, e mereceu de Glauber Rocha um documentário esperançoso. A miséria mostrada no filme, longe da redenção anunciada, só fez aumentar.
Na Presidência devido à morte de Tancredo, Sarney pronunciou uma frase que parecia prenunciar bons tempos: "Deus não me trouxe de tão longe para que eu falhe". Falhou fragorosamente quando, inebriado pelo sucesso do Plano Cruzado, trocou os ajustes necessários por uma vitória eleitoral esmagadora do PMDB. Em seguida, o plano fez água e nunca mais o governo Sarney recuperou-se.
Mesmo tendo tido um governo em muitos aspectos desastroso, Sarney conseguiu que prevalecesse na percepção popular um traço inegável de sua conduta política: a tolerância e a valorização da democracia, que ele ajudou a consolidar.
Essa fama lhe deu outra chance de permanecer na política com uma postura de "estadista" que poderia tê-lo reabilitado, não fosse a necessidade de manter o poder regional no Maranhão e no Amapá e o hábito irrefreável do fisiologismo, do nepotismo e da troca de favores como moeda política.
E é essa pequena política que o está levando mais uma vez para a porta dos fundos da História.