sábado, junho 27, 2009

Alex e Eu, a cientista e o papagaio

da Veja

O papagaio era um gênio

Um livro curioso e divertido conta as façanhas de Alex,
a ave que chegou a ganhar um obituário na revista 
The Economist
 graças à sua inteligência


Diogo Schelp

Rick Friedman/Corbis/Latinstock
UM EINSTEIN COM ASAS
Irene Pepperberg olha embevecida para Alex. Ele sabia contar, nomear cores, formas e materiais. Mais esperto do que muito marido por aí...


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Nesta reportagem
• 
Quadro: Bichos inteligentes
Exclusivo on-line
• Trecho do livro
Vídeos sobre o papagaio no Youtube
• Alex, o papagaio falante
• Irene M. Pepperberg trabalhando com Alex
• O adeus a Alex (1976-2007)
• Alex exibe seus conhecimentos

A última do papagaio não é piada. É uma história que põe em xeque certezas estabelecidas sobre o que diferencia um homem de um animal. No dia 20 de setembro de 2007, o obituário da revista inglesa The Economist, uma das peças mais bem escritas do jornalismo, que homenageia personalidades internacionais, como músicos, estadistas e vencedores do Prêmio Nobel, noticiou a morte de um papagaio-cinzento de 31 anos chamado Alex. Era, de fato, um pássaro especial. Alex tinha habilidades cerebrais que antes se pensava exclusivas dos seres humanos – e, com alguma boa vontade, dos primatas em geral. E, com algum pessimismo, não de todos os homens. O papagaio sabia contar até seis e fazia cálculos simples, como somar dois mais três. Ele identificava cores e objetos pelo nome e usava corretamente conceitos abstratos como "nada" ou "diferente". Nos últimos anos de vida, Alex demonstrou até ser capaz de perceber a equivalência entre o numeral "6", por exemplo, e meia dúzia de objetos iguais – sem ter recebido treinamento específico para isso. Os bastidores dos experimentos que revelaram a genialidade desse papagaio estão no livro Alex e Eu (tradução de Marcia Frazão; Record; 240 páginas; 38 reais), de Irene Pepperberg, professora de cognição animal das universidades Harvard e Brandeis, nos Estados Unidos. Você, leitora, trocaria seu marido por um papagaio? Pois a pesquisadora americana comprou Alex quando ele tinha 1 ano de idade e, nas três décadas seguintes, devotou-se quase integralmente a testar os limites de sua inteligência. Sua dedicação era tamanha que abandonou empregos para realizar seu objetivo – e também o maridão.

Em vez de dona, Irene preferia considerar-se colega de trabalho do papagaio. No livro, que não tem pretensão científica, ela relata a sua convivência com esse adorável, ciumento e mandão a quem deu o nome de Alex. A autora também descreve como foi massacrada por outros cientistas pela ousadia em buscar traços de pensamento em uma ave, recorda a carreira instável e resume de maneira clara suas descobertas científicas. Mas é nos detalhes da convivência diária com Alex que o relato de Irene seduz e desarma até o leitor mais cético, envolvendo-o em situações divertidas e repletas de demonstrações da inteligência de seu querido papagaio. Alex, por exemplo, usava nos contextos certos expressões como "pão" e "gostoso". Na primeira vez que experimentou um bolo, chamou-o espontaneamente de "pão gostoso". Manifestações como essa, como a própria Irene reconhece, apesar de surpreendentes, não podem ser facilmente confirmadas dentro das regras rígidas da ciência. Para isso, precisariam ser repetidas dezenas de vezes. No entanto, o fato de Alex ficar entediado com os testes dificultava ainda mais as coisas.

Era comum acontecer de, depois de horas respondendo a perguntas dos pesquisadores, ele se cansar e pedir "quero voltar", para retornar à sua gaiola. Certa vez, Irene tentava apresentar os resultados de seus estudos a potenciais patrocinadores, mas tinha pouco tempo e Alex estava impaciente. O teste consistia em a pesquisadora mostrar ao papagaio uma bandeja com combinações de letras agrupadas por cor. Irene dizia a cor de um dos grupos de letras e pedia a Alex para responder que som elas formavam: "shh", por exemplo. Ele acertava as questões, mas antes de passar para a próxima pedia "quero noz". Irene não queria dar-lhe de comer antes de terminar o teste e continuou com as perguntas, até que Alex repetiu: "Quero noz! Nnn... óó... zzz". Ou seja, praticamente soletrou a palavra para a dona, para comunicar com mais ênfase o desejo de comer nozes. Alex não foi condicionado para isso e, aparentemente, conseguiu separar de maneira espontânea os fonemas do vocábulo. Se houvesse uma boa amostra estatística desse comportamento, isso comprovaria que o papagaio tinha domínio sobre um elemento essencial da linguagem. Como não podia ser replicado, o episódio não tinha valor científico. Para Irene, no entanto, ficou a impressão de sua capacidade para tanto.

Saber o que se passa na cabeça de um papagaio é tão difícil quanto descobri-lo em uma criança pequena. Não dá para perguntar "o que você está pensando" a uma ave, mesmo uma que conhece 150 palavras, como era o caso de Alex, nem a um ser humano de 1 ano de idade e esperar que eles discorram longamente sobre o tema. Para isso, precisariam ter controle completo de um sistema linguístico – a manipulação de símbolos, como palavras e gestos, para representar a realidade e se comunicar. A teoria mais difundida entre os cientistas, hoje, é que sem linguagem não há pensamento. Irene Pepperberg e outros estudiosos do comportamento animal tentam mostrar que uma coisa não depende, necessariamente, da outra. Eles têm a seu favor o fato de a ciência já ter revisto algumas vezes o conceito de pensamento.

O atributo que faz do homem um ser único já incluiu habilidades como a de criar ferramentas, antecipar situações, ensinar e se comunicar. Os estudos de comportamento animal iniciados na década de 70 revelaram que essas e outras capacidades cognitivas estão presentes também em chimpanzés e golfinhos. Antes desse período, predominava a escola comportamental, que considerava os animais não mais do que seres que apenas imitavam o ser humano em algumas de suas atitudes. "Experimentos como os que foram feitos com Alex tornaram obsoleta uma definição absoluta e única de 'pensar'. O mais apropriado é falar em gradações de raciocínio", diz o neurocientista Renato Sabbatini, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Dito em outras palavras, o raciocínio humano é desenvolvido o suficiente para planejar pontes, aviões, sinfonias e usinas nucleares. Já o do chimpanzé lhe permite usar varetas para roubar mel de uma colmeia, mas não, até onde se sabe, olhar para as conquistas da civilização e matutar: "Puxa vida, eu aqui em cima desta árvore e os humanos dormindo em colchões de mola".

Em um tempo curto de vida, metade da longevidade média de um ser de sua espécie, Alex ajudou a questionar os argumentos normalmente usados para assegurar a superioridade humana sobre as espécies. Como é possível que uma ave, cujo último ancestral comum ao homem viveu há 280 milhões de anos, conseguisse fazer cálculos simples de adição? No mínimo, isso significa que a evolução criou formas de inteligência em processos paralelos. Um resultado disso são as diferenças entre o cérebro de um primata, grande e com um córtex cheio de dobras, e o de uma ave, pequeno e liso. Possivelmente, se tivesse vivido mais trinta anos, Alex poderia ter derrubado novas barreiras intelectuais entre bichos e homens. Será necessário estudar outros papagaios para descobrir se Alex era um ponto fora de curva. Se isso for verdade, da mesma forma que não se pode definir a humanidade com base no QI de Albert Einstein, não vai dar para classificar toda a papagaiada segundo os feitos de Alex.

"Alex pensava"

Irene Pepperberg, de 60 anos, passou metade da vida treinando e estudando o papagaio-cinzento Alex. Ao dar a seguinte entrevista a VEJA, por telefone, ela articulou cada palavra como se falasse com um papagaio. Ao fundo, era possível escutar os assovios dos pássaros de seu laboratório, situado nos arredores de Boston.

Qual é a relevância de saber se os animais pensam?
Nós dividimos o mundo com essas criaturas. Precisamos entender tudo sobre elas para que possamos respeitá-las, e não apenas tirar vantagem de sua existência. Há um longo caminho a percorrer nesse sentido. Alex provou que uma ave com o cérebro do tamanho de uma noz com casca pode fazer as mesmas tarefas que macacos, golfinhos e crianças pequenas. Esse foi um grande avanço.

Alex era um gênio de sua espécie?
Ele foi muito estimulado. Nenhum dos meus outros pássaros, tampouco qualquer outro papagaio em condições de pesquisa, teve o mesmo tratamento. Por quinze anos, Alex foi minha única ave. Ele interagia com humanos doze horas por dia. Nós conversávamos com Alex constantemente, fazíamos perguntas, comentávamos assuntos entre nós na sua presença e o envolvíamos na conversação. Nós nos detínhamos em cada palavra dita por Alex. Se ele pedia milho, nós dizíamos: "Está bem, você quer milho amarelo? A cor do milho é 'amarelo'". Isso o ajudava a compreender mais um conceito de cor.

Alex pensava?
Sim. Ele conseguia processar informações de uma maneira muito complexa. Tinha uma capacidade de discernimento que lhe permitia juntar vários de seus conhecimentos para solucionar um problema.

O que significa "inteligência" e "pensar", no caso de Alex? 
Quando Alex treinava a compreensão dos números, usava a inteligência. Eu mostrava a ele uma bandeja com números de cores diferentes misturados e perguntava: "De que cor é o seis?". Ele respondia corretamente. A capacidade de pensar foi revelada em outra situação impressionante. Eu mostrava grupos com dois, três e seis objetos na bandeja, cada um de uma cor, mas Alex só repetia "cinco", justo o número ausente. Eu então lhe perguntei: "Está bem, qual é a cor do cinco?". E, para minha surpresa, ele respondeu: "Nenhuma". Alex havia assimilado o conceito de ausência de um atributo, que tínhamos aplicado em outros treinamentos, e transferido para a ausência de um objeto. Isso é pensar. Não com a mesma complexidade que um ser humano, é claro. Não creio que Alex teria sido capaz de aprender quatro línguas, por exemplo, ou ter o tipo de conversa que você e eu estamos tendo.

O fato de reconhecer, no livro, o valor afetivo que o papagaio tinha em sua vida pode ser usado para criticá-la como cientista?
Isso já aconteceu. Um de meus colegas escreveu uma resenha muito negativa de Alex e Eu na revista Nature. Não era o lugar certo para fazer isso. Afinal de contas, trata-se de uma revista científica, e meu livro não é acadêmico, é de memórias. O argumento do autor foi que, ao falar das minhas emoções, eu invalidei as pesquisas com Alex. Ele está enganado, porque os meus artigos científicos foram revisados com muito cuidado, saíram em publicações respeitadas e ganhamos prêmios por eles. Nunca deixei cair a barreira da objetividade entre mim e Alex enquanto ele estava vivo.