sexta-feira, maio 01, 2009

Lya Luft

Esse poço tem fundo?

"É frágil uma democracia na qual pobres e ricos,
jovens e velhos, reagem com um dar de ombros
quando se fala nesses desmandos, nesses abusos,
nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e
as piores, que ainda ignoramos"

Houve um tempo em que se ensinava às crianças que, se a gente furasse um poço dias e dias e anos e anos a fio, chegaríamos ao Japão (ou era China que diziam?) e estaríamos no meio de crianças orientais de olhos puxados e costumes muito diferentes. Menina de cidade do interior, só conheci a maravilhosa cultura oriental muitos anos depois.

Adulta, descobri que a vida tem outros poços, nem todos divertidos. Um deles agora se afunda como se não tivesse chão: o poço dos escândalos nossos de cada dia, o poço da nossa desolação e dos nossos enganos. Percebo que, a pior das situações, raras pessoas ainda se dão ao trabalho de se preocupar de verdade. A maioria, talvez para suportar tantos desencantos, dá de ombros dizendo que é isso mesmo, as coisas são assim, no Brasil é assim, no mundo inteiro está ficando assim, e afinal "não tem problema".

Ilustração Atômica Studio


Propriedades produtivas são invadidas sob proteção não se sabe de quem: ninguém parece fazer nada. Congressistas e senadores fazem farras inimagináveis quando ainda acreditávamos neles: não tem problema. Mensaleiros continuam sendo processados, mas não sei que tenham perdido a honra, ou vivam execrados. Agora, no Supremo Tribunal do país, ministros batem boca diante de telespectadores atônitos: parece que perdemos o último baluarte da nossa esperança.

Mas fiquem tranquilos, não tem problema.

Não devemos nos espantar com a generalizada quebra de autoridade. Tudo numa boa, por aqui é assim. Sem stress, que dá rugas, sem exageros, que a gente vira um chato. Que povo estamos nos tornando? Ignoramos essas circunstâncias, que agora não são apenas corrupção escancarada e impune, mas falta de compostura de quem era a última instância de nossa vida problemática, derradeira inspiração para a desorientada juventude nossa. Mas não ignoramos por sermos ignorantes, e sim porque nos dizem que está tudo numa boa, e não adianta reclamar. A gente se acomoda, se distrai, olha para o outro lado, porque a capacidade de reagir nos foi lentamente, subliminarmente, retirada. Não por sermos um povo acomodado ou superficial, mas mergulhado num estado geral de desinteresse – e isso contagia feito uma nova doença, uma gripe de derrotados nem sempre suínos. Algo negativo e sombrio perpassa este país, e nem os trios elétricos nem zabumbas nem carnavais ou belas danças típicas do interior conseguem disfarçar.

É frágil uma democracia na qual pobres e ricos, jovens e velhos, reagem com um dar de ombros quando se fala nesses desmandos, nesses abusos, nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e as piores, que ainda ignoramos. (Pois, quanto à chamada farra das passagens, dizem os que sabem das coisas que o pior vai permanecer oculto, não por último para preservar, em alguns casos, a solidez da santa família brasileira.) A gente ou sabe ou imagina, e comenta como se fosse engraçado: quem ainda acredita nos políticos? Quem ainda tem fé nas instituições? Olhe só o que está acontecendo por aí, e nem é de hoje. Nem vai se corrigir, ao contrário: cada vez aparece algo mais sério, mais sinistro, objeto de reais ou falsas investigações tantas vezes desfocadas e ineficientes, ou aparentemente rigorosas. Sentimos uma lufada de otimismo, agora, sim, a coisa vai endireitar... mas logo se desfaz diante do comentário que vem do alto: tudo resolvido, não tem problema.

Tem problema. Tem muito problema. Não é normal, não é assim o Brasil, não são assim os brasileiros. A falta de autoridade de tantos líderes contamina feito uma gosma escura, uma doença maligna corroendo a decência neste país, tirando-nos discernimento e capacidade de julgar. Fingimos não saber, fingimos nem ligar. Aos mais simples, como às crianças e jovenzinhos, é repetido que está tudo bem, tudo em ordem. "Não tem problema." Assim, descrentes e céticos, protegem-se com um precoce cinismo, que afinal é um jeito (pobre) de sobreviver na selva moral.