O ESTADO DE S PAULO
Acredito que muitos leitores deste jornal façam como eu. Leio os títulos da primeira página, vou direto às matérias internacionais e algumas outras, mas apenas passo os olhos pelas páginas que tratam da política nacional.
Irrelevância do tema? De modo algum. Essa leitura reflete um sentimento de cansaço, decorrente da repetição de eternos problemas, nunca ou quase nunca solucionados. De seu elenco, extraio alguns: o desequilíbrio entre os três Poderes da Federação, resultando na hipertrofia do Poder Executivo; a questão da representação política e dos partidos; o caráter transgressor da cultura política.
Convém ressalvar que os problemas não são marca registrada de nosso país, pois podemos constatar a presença deles em todos os regimes democráticos. A tendência à hipertrofia do Poder Executivo ocorre nos sistemas presidencialistas, como fruto dos poderes atribuídos ao presidente; dos dilemas crescentes, que exigem pronta decisão; ou, simplesmente, da tendência governamental no sentido de estender seu poder. Esse é, aliás, um tema em debate nos Estados Unidos, onde o presidente George W. Bush reduziu o Congresso à condição de simples instrumento de chancela de seus atos, a partir do 11 de Setembro.
Por sua vez, os partidos vêm perdendo o caráter de agregadores de amplos interesses sociais e de socialização e tendem a transformar-se em máquinas eleitorais. Quanto às transgressões, elas abrangem uma série de atos graves ou de deslizes, como se constatou recentemente no caso do uso indevido de verbas por parlamentares britânicos. Assim, as mazelas não são só nossas nem se devem apenas aos traços da formação histórica: as sempre invocadas raízes ibéricas.
A hipertrofia de nosso Executivo, esboçada no governo FHC, pelo uso excessivo das medidas provisórias, escalou no governo Lula, com o acréscimo de expedientes escandalosos de outra natureza, de que o mensalão é o exemplo mais gritante, e da cooptação generalizada. A esse processo de concentração de poderes e de utilização de métodos "heterodoxos" corresponderam o esvaziamento da atividade própria do Poder Legislativo e a desmoralização grotesca de vários de seus membros. Ressalvem-se os raros momentos de brilho, como o da extinção da CPMF e a recente aprovação de emenda constitucional na Câmara de Deputados para facilitar os processos de divórcio.
A crise do Legislativo liga-se ao problema da representação. Excetuada uma parcela minoritária do eleitorado, o elo entre o suposto representante, a quem é conferido o mandato popular, e o representado simplesmente inexiste. Como incentivar o eleitor a fazer escolhas com informações suficientes e a acompanhar a atividade parlamentar, inclusive pressionando os eleitos, quando for o caso? Não obstante os louváveis esforços de organizações da sociedade civil e dos tribunais eleitorais nesse sentido, os resultados têm sido precários. Parlamentares acusados de toda sorte de transgressões retornam com frequência a cargos eletivos, consagrados pela "voz das urnas".
Não se trata de sonhar com a formação de uma ampla opinião pública em que cada eleitor tenha plena consciência das regras do regime democrático e de seu papel como cidadão. Mas não há dúvida de que é muito difícil atrair um eleitorado decepcionado ao exercício da cidadania, dados os níveis de educação, as contingências da vida diária e a tendência à privatização da vida. Tanto mais que nossas elites políticas foram incapazes até hoje de construir partidos sólidos e coerentes, como se constata no caso do PSDB, principal partido de oposição. Quanto ao PT, o outrora "partido da ética na política", subordinou-se ao carisma do presidente Lula e cada vez mais vem se transformando numa máquina destinada a extrair votos e a conferir as benesses da nomeação para cargos públicos. Não é por acaso, aliás, que a proposta de voto em lista fechada para as eleições à Câmara vem sofrendo pesadas críticas. Isso se dá não tanto por seu conteúdo, e sim pela natureza problemática de nossos partidos.
O caráter transgressor da cultura política é um problema complexo, cujo nó não pode ser desatado facilmente. Aqui, a diferença do que ocorre em democracias estáveis se situa tanto no aspecto quantitativo quanto no qualitativo. Os "leves" escândalos - "leves" em termos comparativos - ocorridos na Inglaterra tiveram pronta resposta da opinião pública, contribuíram para o desprestígio dos dois maiores partidos britânicos - especialmente o Partido Trabalhista, no poder - e forçaram a demissão do presidente da Câmara dos Comuns. Em outro exemplo, mais dramático, um ex-presidente sul-coreano, sob investigação por corrupção, suicidou-se, saltando do alto de uma montanha. Em nosso caso, poucos membros da classe política se arrependem de transgressões maiores ou menores. Mais ainda, estão convencidos da legitimidade de procedimentos irregulares, como é o caso do uso de passagens aéreas por parentes, em nome da estabilidade da família, da percepção indevida do auxílio-moradia, etc.
Estas considerações não pretendem ser uma cartilha de pessimismo. A olhos vistos, o País avançou em inúmeros aspectos, e não apenas no terreno econômico. Mas não é preciso muito esforço para constatar que as instituições políticas do País estão em descompasso com relação a outras esferas da vida social e que a classe política vive uma profunda crise de legitimidade.
Esse quadro não é irrelevante, pois é impossível e indesejável dar simplesmente de ombros para o universo político. A crise de suas instituições é um obstáculo para que o País se torne, sem ilusões de perfeição, uma democracia madura.