sábado, maio 30, 2009

Especial Japão: o desafio de enfrentar o mundo pós-crise

da Veja

O gigante ferido

O Japão do emprego vitalício, dos gordos bônus e das
promoções por tempo de serviço está fadado a desaparecer. 
Combalida, a segunda maior economia do planeta se prepara
para enfrentar o mundo pós-crise


Thaís Oyama, do Japão

Yossan/Corbis/Latin Stock

NEM TUDO O QUE RELUZ... 
Em Tóquio, mendigos já fazem parte da paisagem dos parques públicos



VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem
 
Quadro: Crise e oportunidade 
• Quadro: O segundo mais crico, ainda 

Todos os anos, em abril, quando as cerejeiras florescem no Japão, as empresas repetem uma tradição: logo de manhã, enviam aos parques das cidades os funcionários mais jovens, recém-saídos da faculdade, para que se sentem sob a mais frondosa árvore que encontrarem e lá permaneçam até o fim do dia. A honorável missão é "guardar lugar" para os colegas mais velhos que, encerrado o expediente, se reunirão no local para o "hanami", ou "contemplação das flores" – antigo ritual que, no caso dos "sarariman" (corruptela do inglês "salaryman", ou trabalhadores assalariados), inclui o consumo de hectolitros de saquê e cerveja. No auge da última florada, não se via uma cerejeira vaga nos parques de Tóquio. Se a crise não abalou o hanami, popular desde os tempos feudais, o mesmo não se pode dizer dos sarariman. Seu mundo está com as primaveras contadas – aquele em que as empresas, tal qual xoguns modernos, são responsáveis pelo bem-estar dos trabalhadores, o emprego é vitalício, a produtividade é recompensada por gordos bônus e o salário dos funcionários aumenta quanto mais velhos eles ficam. O modelo, surgido no pós-guerra, funcionou muito bem até a década de 80, saiu trincado da recessão dos anos 90 e agora parece fadado a ruir de vez. Para o Japão, seu desaparecimento não significará apenas uma mudança de métodos de gestão, mas de modo de vida. A imagem da sociedade hierarquicamente ordenada e altamente produtiva, na qual o cotidiano segue imutável como o curso das estações, está em desacordo com o capitalismo em desalinho e o que vai surgir a partir dele.

O Japão é a segunda nação mais rica do mundo, e sua população apresenta uma das menores disparidades de renda. Estava começando a sair de uma década e meia de estagnação quando a crise financeira o engoliu. Em Tóquio, ela se materializa nos parques, na forma de dezenas de sem-teto que antes não constavam da paisagem. De madrugada, uma visita a cibercafés mostra que alguns dos frequentadores estão lá para se distrair da insônia ou porque perderam o último trem para casa – grande parte da freguesia é formada por vítimas da crise que, na falta de lugar mais barato para passar a noite, pagam 5 dólares por hora para dormir, na maioria das vezes sentadas, no interior das cabines (veja o quadro). O Japão enfrenta um de seus piores momentos desde o fim da II Guerra. No período de um ano, a economia encolheu mais de 15%. As exportações despencaram 45% em março e, no setor automobilístico, o tombo chegou a incríveis 65%. Já a taxa de desemprego ficou em 4,8% – bem mais baixa que os 8,5% dos Estados Unidos, por exemplo. A explicação para isso é que, ao contrário do pragmatismo americano que faz com que verbos como "enxugar", "secar" e "cortar" sejam conjugados com a mesma naturalidade com que se come um hambúrguer, a lógica japonesa determina que, mesmo diante de um excesso de mão de obra, empregadores ainda enxerguem a demissão como um recurso vergonhoso. Desde o ano passado, eles contam com dinheiro público para evitá-la: o governo se compromete a pagar até 80% dos vencimentos dos empregados que as empresas decidirem não dispensar. Em março, quase 50 000 companhias recorreram ao benefício – ainda que muitas estejam repletas de operários sem ter o que fazer. "As grandes empresas japonesas enxergam os funcionários como patrimônio", diz o economista Masamichi Adachi, analista da JP Morgan em Tóquio. Entre os aspectos positivos dessa visão, está o grau de comprometimento do empregado com a qualidade do produto que ele fabrica – um dos pilares do "toyotismo", o método de produção que a Toyota disseminou a partir dos anos 50, em contraponto ao "fordismo", que privilegiava a quantidade em detrimento da qualidade. Já o lado deletério do princípio do emprego vitalício, afirma Adachi, é a redução da competitividade das indústrias japonesas – "em relação ao mundo em geral e à China em particular".

Frank Kletschus/Alamy/Otherimages

PRIMAVERA NA CAPITAL 
Assalariados se reúnem para contemplar as cerejeiras floridas, em ritual regado a muito saquê e cerveja

Além de fragilizar o Japão diante da concorrência, o engessamento das relações de trabalho no país criou também um problema social: o aumento do número de empregados temporários, uma raridade até a década de 80, quando 84% dos trabalhadores eram permanentes. O Japão vinha de três décadas de crescimento vertiginoso e as empresas disputavam à ponta da espada tanto a mão de obra operária (o fenômeno dos dekasseguis brasileiros teve início aí) quanto os recém-formados que as universidades produziam a cada ano. Com o fim dos anos dourados, o emprego para esses últimos sumiu. Data desse período o surgimento dos "shushoku-ronins", literalmente, "estudantes desempregados", denominação para os jovens que, com o intuito de evitar o constrangimento de sair da universidade sem colocação, prolongam sua estada nos bancos escolares usando expedientes que vão desde o não cumprimento dos créditos exigidos até o fracasso deliberado nos exames. As empresas, por sua vez, passaram a absorver um número crescente de trabalhadores provisórios, que podem ser dispensados a qualquer hora. Hoje, o contingente responde pela vasta maioria dos desempregados do país, não dispõe de uma rede de proteção social adequada (ela ainda é precaríssima no país) e tornou-se alvo de discriminação – sobretudo os pertencentes à subcategoria dos freeters. O termo (contração de "free", livre em inglês, com "arbeiter", trabalhador em alemão), que nasceu para designar os jovens que se recusavam a seguir o caminho corporativo tradicional e preferiam ser "trabalhadores livres", hoje serve para classificar aqueles sem emprego fixo, que têm entre 21 e 34 anos, não ganham o suficiente para se sustentar e, por causa disso, são malvistos pela sociedade (veja o quadro). Os freeters, em geral, vivem com os pais – estes, sim, detentores da riqueza no Japão. Três quintos da poupança privada do país estão nas mãos de cidadãos com mais de 60 anos. Tamanha concentração ganha contornos bem concretos aos olhos do visitante que passeia por Ginza, bairro com as mais requintadas lojas de departamentos de Tóquio. Lá, funcionários de marcas de grife bocejam e os raros clientes que atendem são quase sempre aqueles que fizeram seu pé-de-meia nos bons tempos em que, dizia-se, só o terreno do Palácio Imperial valia mais do que todos os imóveis da Califórnia. Os mais velhos no Japão não são apenas os mais ricos: são também os primeiros na fila de promoção. Tanto no setor público como no privado, a maioria das empresas ainda define o valor dos salários com base na data de nascimento do empregado: quanto mais velho ele for, mais deve ganhar. "É uma das grandes dificuldades das empresas do país: substituir o conceito de senioridade pelo de meritocracia", diz o advogado americano Kenneth Port, especialista no mercado japonês. Para Adachi, o sistema de promoção por tempo de serviço vai demorar a ser extinto. "Está profundamente arraigado na sociedade."

No último dia 20, o ministro das Finanças Kaoru Yosano veio a público anunciar uma boa e uma má notícia. A má foi que a queda no produto interno bruto no primeiro trimestre de 2009 foi de 4%, a maior desde a II Guerra. A boa foi que, afinal, o Japão havia chegado ao fundo do poço. "Penso que o pior já passou", disse o ministro. Na quarta-feira, a notícia da diminuição na queda nas exportações – de 45% para 39% – melhorou ainda mais os ânimos. Mas especialistas concordam que uma nação que tem a China nos seus calcanhares, pronta para abocanhar-lhe os fregueses, terá de fazer reformas estruturais profundas se não quiser perder o trem-bala da história. Sair do fundo do poço não é garantia de que não se vá cair dentro dele de novo.

Nada que os japoneses já não conheçam. A história recente do país é de superação e resistência (veja o quadro). Nas duas últimas décadas, ele viu seu sistema bancário ser reduzido a frangalhos e os índices de desemprego e falência atingir níveis recordes. Entre 1995 e 2004, registrou nove deflações. Quando se preparava para respirar, foi colhido em cheio pela crise, como já se disse. Apesar de tantos percalços, o Japão mantém há quatro décadas o posto de a segunda maior economia do planeta, graças a investimentos maciços em educação e produção tecnológica. O admirável mundo novo que surgirá depois do vendaval da crise dissipou algumas certezas dos japoneses, tal como as flores de cerejeira no fim da primavera. Mas as bases em que o seu país foi construído são robustas o suficiente para fazê-lo sair da tormenta maior do que entrou.

O "freeter" que deu certo

Kaoru Fujimoto

INDEPENDENTE E FAMOSO
Agora, só falta Akagi conseguir se casar

Até 2007, Tomohiro Akagi, de 33 anos, pertencia a uma espécie de casta inferior no Japão: a que abriga os jovens sem emprego fixo, que vivem de trabalhos temporários e que, por falta de condições financeiras, moram com os pais. Numa cultura de raízes confucionistas, o freeter merece o desprezo da sociedade por ser alguém que cometeu dois "pecados": não se esforçou suficientemente nos estudos e provavelmente não vai cumprir o mais sagrado dos deveres filiais, que é o de dar continuidade à família, já que não tem dinheiro para constituir uma.

Foi para falar dessa condição de quase-pária que Akagi, então trabalhador temporário em uma loja de conveniência, começou um blog. Seus textos acabaram rendendo-lhe um convite para escrever um artigo numa revista publicada pelo Asahi Shimbun, o maior jornal do país. Nele, Akagi relatou sua dura vida de freeter, que se resumia a ir para o serviço tarde da noite, trabalhar de madrugada, chegar em casa (dos pais) de manhã, navegar na internet, dormir, acordar à noite e começar tudo de novo. Para, nos intervalos, invejar os homens da sua idade que via nas ruas acompanhados de mulher e filhos – "enquanto eu, longe de um dia poder casar, vivo como um parasita na casa dos meus pais", escreveu. Akagi dizia-se humilhado nessa situação, pela qual, assumia, tinha culpa parcial (havia sido mau aluno), mas não total, dado que as condições que o Japão oferecia no momento em que ele deveria ingressar no mercado de trabalho eram as piores possíveis. "Meus pais chegaram quando a economia estava no auge. Nós, freeters, encontramos a bolha estourada", disse a VEJA.

O artigo reverberou por todo o Japão, Akagi virou uma celebridade e transformou em questão nacional o que era o problema de um grupo. Não resolveu o problema da categoria, mas diminuiu em muito o seu. Com o rendimento dos livros que publicou em seguida, pôde deixar o emprego na loja de conveniência e alugar um apartamento em Tóquio. "Conseguir morar sozinho foi minha maior conquista", diz. Agora, só falta a noiva.

 

A vida num cibercafé

Kyung Hoon/Reuters

MELHOR DO QUE NA RUA 
Na maior parte das cabines, dorme-se sentado

Nos cibercafés de Tóquio não se ouvem sons de computador, risadas ou conversas. Primeiro porque quem navega na internet tem de usar fone de ouvido. Depois porque poucos estão lá para isso. Desde o início da recessão japonesa, os cafés se transformaram em hotéis improvisados para desempregados que querem escapar do desconforto das ruas e do constrangimento de pedir abrigo a parentes. Dispõem-se a pagar entre 2,5 e 5 dólares por hora para dormir em cabines onde, em geral, só cabem um computador e uma poltrona. Trata-se de uma pechincha para os padrões japoneses.

Os sapatos perfilados diante das cabines indicam que o público é majoritariamente masculino. Homens solteiros, com idade entre 25 e 40 anos, compõem a maioria dos desempregados japoneses. Estima-se que existam hoje em Tóquio mais de 2 000 "moradores" de cibercafés. Por mais deploráveis que eles pareçam, são, é claro, bem mais confortáveis do que a sarjeta: alguns oferecem, além de chuveiro e máquinas de sopa instantânea, almofadas e chinelos descartáveis aos hóspedes. Os "residentes" há mais de um mês têm o direito de fornecer o endereço como seu – o que permite, por exemplo, receber em domicílio o exíguo seguro-desemprego oferecido pelo governo japonês.

 

Quase ninguém voltou

John Lander

TROMBADA COM A CRISE
Autoescola de brasileiros em Hamamatsu: fechada por falta de alunos

Na cidade de Hamamatsu, a oeste de Tóquio, por trás de quase todas as lojas de portas cerradas está um brasileiro falido. Estúdios de tatuagem, autoescolas e supermercados de produtos típicos – todos com letreiros em português – fecharam por falta de freguesia. Na cidade com o maior número de brasileiros do Japão (180 000 dekasseguis, ou trabalhadores temporários), 60% estão desempregados. A crise atingiu em cheio a comunidade, quase toda dependente do setor que a crise mandou para os ares: o das fábricas de automóveis e autopeças. A situação já foi pior. No fim de 2008, quando as fábricas começaram a demitir em massa, era comum encontrar famílias em que todos os integrantes haviam perdido o emprego ao mesmo tempo – quando não a casa também, já que as empresas costumam fornecer moradia aos empregados (e tomá-las de volta quando os demitem). Com parentes e amigos na mesma situação, muitos brasileiros só não foram parar nas ruas graças a uma rede de solidariedade montada às pressas por entidades como a Brasil Fureai, que cuidou de localizar famílias dispostas a receber outras, providenciou cestas básicas e distribuiu informações sobre como pleitear o seguro-desemprego. Com tudo isso, desde o início da crise, apenas 35 000 brasileiros, dos mais de 300 000 que vivem no Japão, retornaram ao Brasil. E não mais do que 2 000 aceitaram a oferta de dinheiro do governo japonês para comprar passagens de volta. Para os muitos que ficaram, no entanto, a vida não será mais a mesma. Por causa do modelo de trabalho nas fábricas, a maioria dos dekasseguis nunca precisou aprender japonês. Em Hamamatsu, 73% deles dizem falar "o mínimo" ou "quase nada" da língua. Agora, a necessidade de buscar a sobrevivência em setores alternativos, como o de serviços, está fazendo com que os brasileiros se esforcem para fazer o que nunca fizeram antes: viver no Japão como um japonês.