sexta-feira, maio 01, 2009

Especial A crise e o futuro da China

2009, o ano do G-2

Mas se os Estados Unidos não se cuidarem pode ser que
a China saia da crise ainda mais forte e faça o G-1 sozinha


Lauro Jardim, de Pequim

Shawn Thew/Corbis/Latinstock

Reunião do "G-2"
Hu Jintao e Obama: seguidos ataques à solidez do dólar, expansão do poderio bélico e provocações calculadas aos EUA



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• Quadro: Quando a crise passar...


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Exclusivo on-line
Galeria: feira de empregos na China

Com um vigor que lembra o seu espantoso crescimento econômico das últimas três décadas, de quase 10% ao ano, a China está manobrando a seu favor o xadrez geopolítico internacional. Os movimentos do país que mais cresce no planeta contrastam com a perplexidade das grandes potências, semiparalisadas pela crise econômica mundial. Até meados da década, a China destacava-se na paisagem global por ter sido capaz de tirar da miséria centenas de milhões de pessoas. Agora a nação tem pretensões muito maiores. Quando se espanarem as cinzas jogadas pela crise sobre o mapa econômico e político, a China surgirá com uma estatura e uma força relativa inéditas na nova ordem mundial. Niall Ferguson, historiador da Universidade Harvard, resume com clareza esse novo papel de Pequim: "Os Estados Unidos deveriam se apressar a fazer uma reunião do G-2 com a China antes que ela faça um G-1 sozinha".

Nos últimos três meses, a China fez várias apostas. Todas elas altas. Numa ponta, mirou os EUA como alvo de ataques. Noutra, ousou comparar seu autointitulado "sistema superior" de governo com os praticados pelas democracias representativas do Ocidente. E bateu no peito para afirmar com todas as letras que seu sistema era mais eficiente para resolver a crise. Numa terceira ponta, abriu o cofre para comprar fabricantes estrangeiros de matérias-primas. Uma das aquisições mais espetaculares foi a de parte da mineradora anglo-australiana Rio Tinto pela estatal de alumínio chinesa por 19,5 bilhões de dólares. E, para completar, a China piscou o olho (e abriu a carteira) para países da Ásia, América Latina e África, num momento em que as nações desenvolvidas só veem os próprios problemas. O colosso chinês almeja, enfim, mais do que ser reconhecido somente como o chão de fábrica do planeta, somente como aquele país que produz 75% dos brinquedos e 36% do aço do planeta – e passou a deixar tal ambição patente. Ou, conforme a definição de Timothy Garton Ash, professor da Universidade Oxford, o dragão parou de agir como "mero lagarto".

Anderson Schneider

Equilíbrio interno
Liquidação no comércio: se o país crescer abaixo de 8%, não produzirá emprego para os 15 milhões que migram anualmente para as cidades

Não que a crise não a tenha afetado. Atingiu sua economia, sim. As exportações, um dos pilares do milagre chinês, caem desde novembro, e no primeiro trimestre a queda passou dos 20% em comparação com os três primeiros meses do ano passado. Anualizada, essa queda é quase o dobro de tudo o que o Brasil exporta. A construção civil, outro desses pilares, fechou março sem se recuperar de um baque que começou há um ano (veja a reportagem que começa na página 88). Mas suas reservas trilionárias a colocam em situação privilegiada na crise. A verdade é que a China está mais ou menos do mesmo tamanho – a novidade é que os outros gigantes encolheram. Um exemplo: desde setembro, os três maiores bancos do mundo em valor de mercado passaram a ser chineses. Em 2006, nenhum deles figurava entre os vinte maiores. Os EUA, que tinham sete entre os vinte grandes (incluindo os dois primeiros), agora se contentam com três nesse ranking. Até o número 1 em depósitos é, desde abril, um banco chinês: o Banco Comercial e Industrial da China tem o equivalente a 1,3 trilhão de dólares em depósitos, superando o JPMorgan Chase, que possui 1,03 trilhão de dólares.

É justamente na relação com os EUA que a nova postura fica evidente. A subida de tom e a escalada de críticas são notáveis. Logo após o encontro com Barack Obama, na véspera do G-20, o presidente da China, Hu Jintao, deu a senha: "Ter boas relações com os EUA não é apenas algo de interesse dos dois povos, mas também é benéfico para a paz, a estabilidade e a prosperidade da Ásia e do mundo como um todo". A frase é verdadeira, mas é novidade em seu repertório. É como se Hu Jintao dissesse: "Estamos num patamar de igualdade". O dirigente chinês acrescentou que "resultados positivos não serão conseguidos com facilidade". No mesmo diapasão, o governo chinês divergiu dos Estados Unidos ao apoiar a versão da Coreia do Norte de que botara em órbita um satélite de comunicação que, para os EUA, era na verdade um míssil armado com uma ogiva nuclear.

Não por acaso, as pretensões chinesas passam também por expandir seu poderio bélico. Em março, a China anunciou que aumentará seu orçamento militar em 14,9% neste ano. Algo como 70 bilhões de dólares para se armar. Em 2008, já gastara 17% mais do que no ano anterior. O Pentágono duvida dos números chineses. Em documento oficial, calculou que no ano passado a China gastou entre 110 e 150 bilhões de dólares com a área militar – oficialmente, esse valor era de 60 bilhões de dólares. Ressalte-se, contudo, que, seja qual for o parâmetro, os gastos militares da China ainda são bastante inferiores aos dos EUA: os chineses gastam 1,4% do PIB, os EUA 4%, ou 515 bilhões de dólares (isso sem contar o dinheiro gasto nas guerras em que os Estados Unidos se metem). Mas bastante superiores ao de dois países emergentes, como Brasil (12 bilhões de dólares por ano) e Rússia (50 bilhões de dólares). Por enquanto, quem mais se preocupa são os EUA. Diz um relatório do Pentágono, apresentado semanas atrás ao Congresso americano: "Muita incerteza cerca o futuro da China, principalmente sobre como o seu aumento de poder militar será usado".

Anderson Schneider

Confiança inabalada
O governo quer estimular o consumo: 80% dos chineses dizem que vão manter os gastos ou aumentá-los

O momento-chave da escalada chinesa deu-se em março, quando o primeiro-ministro Wen Jiabao bateu na sagrada solidez do dólar. "Emprestamos uma enorme quantidade de recursos aos EUA. E é claro que estamos apreensivos com a segurança dos nossos ativos. Para falar francamente, estamos um pouco preocupados." Pronto. Foram apenas 28 palavras, mas suficientes para obrigar Obama a responder, reafirmando algo que até ali ninguém pusera em dúvida: a capacidade de os EUA honrarem os títulos que emitem. Foi uma espécie de jogo de cena dos chineses, que detêm 1,4 trilhão de dólares em bônus emitidos pelo Tesouro americano, dos 2 trilhões que possuem em reservas estrangeiras (só no ano passado compraram mais 400 bilhões de dólares em T-Bonds). Exatamente por ser a maior detentora desses títulos é que não interessaria à China pôr publicamente em dúvida a solidez desses ativos. Mas não deixou passar a oportunidade para fragilizar os EUA diante do mundo, obrigando-os – suprema ironia – a reafirmar a segurança dos seus títulos como se fossem um desses países caloteiros. "Continuaremos com-prando bônus americanos, mas prestaremos atenção de perto a possíveis flutuações de valor", disse, dias depois, a vice-presidente do Banco Central da China, Hu Xiaolian. Novamente, deixou uma ameaça pairando no ar. "É um tema que nos preocupa: manter nosso dinheiro com os Estados Unidos depende mais deles do que de nós", afirmou o diretor-geral adjunto do Ministério do Comércio, Shen Danyang, em entrevista concedida a VEJA numa das amplas salas de reunião do ministério, perto da Praça da Paz Celestial, em Pequim.

Para não deixar o assunto da fragilidade do dólar (e, por extensão, dos EUA) sumir do noticiário, no calculado intervalo entre a fala do primeiro-ministro e a reunião do G-20, o presidente do Banco Central da China, Zhou Xiaochuan, publicou um artigo propondo a substituição do dólar como moeda internacional de referência para as reservas. Em seu lugar, entraria uma moeda contábil usada internamente pelo FMI (a SDR, na sigla em inglês), regida por uma cesta de moedas que reúne o euro, a libra, o dólar e o iene. Os economistas que preveem o fim do dólar como moeda de referência acham que isso acontecerá a longo prazo. O resto considerou a ideia muito mais como uma provocação. Novamente, contudo, a China obrigou o governo americano a posicionar-se – contra, naturalmente. É assim que ela tem medido forças com os EUA. Num movimento paralelo, fechou alguns acordos, com países como Argentina e Indonésia, para que nas transações de comércio exterior se utilize o iuane, jogando o dólar para escanteio. O Brasil pode ser o próximo a fechar um acordo desse tipo com a China. Na imprensa oficial chinesa (um pleo-nasmo, aliás), cada um desses entendimentos é saudado como "mais um passo para tornar o iuane uma moeda global".

Anderson Schneider

Na direção correta
Vagão de metrô no sul do país: 28 000 quilômetros de trilhos até 2026

Para além da disputa direta com os Estados Unidos, a China tem estendido a mão aos seus vizinhos asiáticos e aos países africanos e latino-americanos. Com o bolso forrado de reservas, procura novos amigos – um jogo de sedução que os EUA praticaram por décadas. Anunciou a criação de um fundo de investimento em projetos de infraestrutura nos países do Sudeste Asiático. Para isso, separou 25 bilhões de dólares. No Congo, em Angola, na Nigéria e em vários outros países africanos, a China opera basicamente com acordos de permuta: banca e faz obras de engenha-ria pesada (estradas, barragens) em troca de concessões de exploração de jazidas minerais. A Sinopec, estatal de petróleo, fechou um acordo com a Petrobras para financiar 10 bilhões de dólares em troca de fornecimento de petróleo. Tem estreitado também relações com Hugo Chávez, de olho no petróleo venezuelano, e com os russos, com quem a empresa firmou um compromisso de abastecimento de petróleo para as próximas duas décadas no valor de 25 bilhões de dólares.

A curva de crescimento de investimentos da China no exterior não para de apontar para o alto. Em 2008, foram 52 bilhões de dólares em aquisições. Menos que os 186 bilhões de dólares dos EUA e os 74 bilhões de dólares do Japão. Mas 63% a mais do que no ano anterior. A previsão para este ano é chegar aos 100 bilhões de dólares. A China quer comprar o que puder na baixa – e não há por que não fazê-lo. Tudo o que for matéria-prima, recursos minerais e fonte de energia interessa ao país: a China é o maior consumidor mundial de cobre, zinco, alumínio e aço; o segundo maior de petróleo. As ofertas têm sido feitas. Para que se tenha uma ideia do tamanho do megaconsumo chinês, o Brasil consome 24 milhões de toneladas por ano de aço; a China, quase vinte vezes mais: 450 milhões de toneladas por ano.

A China acumula 2 trilhões de dólares em reservas estrangeiras – boa parte desse patrimônio amealhada de 2007 para cá. Graças de certo modo a um iuane desvalorizado: como o câmbio não é flutuante, sua moeda mexeu-se relativamente pouco nos últimos anos, apesar do volume monstruoso de ingresso de capital estrangeiro no país e do azul radiante de sua balança comercial. Nos últimos meses, as autoridades chinesas passaram a reagir de forma cada vez mais irritada quando os EUA repetem a velha reclamação de que o país manipula o iuane – as respostas à surrada cobrança americana têm sido mais enfezadas do que nunca. Seja como for, como enfatiza o articulista Martin Wolf no livro A Reconstrução do Sistema Financeiro Global, "a China, como o maior país superavitário do mundo, tornou-se fundamental em qualquer solução para os desequilíbrios globais. O país desempenha um duplo papel na economia mundial: é, ao mesmo tempo, o maior exportador de capital (como o Reino Unido do fim do século XIX) e o gigante emergente em mais rápido crescimento (como os EUA da mesma época)".

Fotos Anderson Schneider e Oliver Weiken/Corbis/Latinstock

Monumentalidade
Os arranha-céus de Xangai (à esq.) e o Parlamento (à dir.), em Pequim: a China valeu-se da crise para enterrar a postura humilde e se afirmar como grande potência mundial

Portanto, a China tem mais dinheiro em caixa que qualquer outro país. Mas tem também 900 milhões de pobres ainda à espera para entrar no fabuloso trem de prosperidade que tirou quase 400 milhões de pessoas da miséria desde que Deng Xiaoping deu o pontapé inicial às reformas que arrancaram o país das trevas econômicas produzidas na era Mao. Não é só a pobreza que aflige: a China convive ainda com a humilhação de ter 116 milhões de analfabetos, um número que vem crescendo, aliás. E esses são problemas que nem os EUA (donos de uma economia ainda o triplo da chinesa) nem a Europa nem o Japão têm.

Por isso, apesar dos movimentos calculados dos últimos meses, a China não pode descuidar-se: o equilíbrio interno tem sido conseguido à base de um crescimento médio de dois dígitos ao ano nas últimas três décadas. É falsa, por isso, a impressão superficial que se tem no Ocidente de que um crescimento de 6% (projetados por economistas de vários bancos) a 8% (a meta do governo) seja algo aceitável em termos chineses. É um número de dar inveja ao resto do mundo, que, segundo o Banco Mundial, deve crescer 1,3% em 2009. Mas é um tombo e tanto. O próprio governo chinês diz que abaixo de 8% não conseguirá produzir empregos para os 15 milhões de chineses que deixam o campo todos os anos e para os 7 milhões de jovens que se graduam nas universidades. No ano passado, o país cresceu 9% e 11 milhões de empregos urbanos foram criados – menos, portanto, do que o necessário. Em 2009, por enquanto, nenhuma melhora: neste primeiro trimestre, o desemprego urbano subiu em relação ao fim do ano passado. Além disso, 1 milhão (de um total de 7 milhões) dos graduados em 2008 nas universidades chinesas estão sem trabalho.

O camponês miserável precisa ver que a fila está andando, que seu parente está migrando para um emprego nas regiões urbanas, para que possa suportar a própria condição. A estabilidade chinesa funciona como a bicicleta: não pode pedalar muito devagar, senão cai. Numa palavra, com crescimento de um dígito, a esperança num futuro melhor esboroa. No fim de 2008, o governo chinês impressionou o mundo ao admitir que 20 milhões de trabalhadores haviam perdido o emprego com a crise e tiveram de voltar para o campo. À moda chinesa, reconheceu o óbvio: a crise econômica é democrática, atinge a todos, inclusive a China. Por que "à moda chinesa"? Porque lançou um dado sem fazer uma comparação com o número de demitidos no mesmo período do ano anterior. A propósito, os especialistas em China são unânimes em colocar dúvidas sobre as estatísticas chinesas, controladas a ferro e fogo pelo governo (o economista americano Nouriel Roubini, por exemplo, acha que são 40 milhões de desempregados). De qualquer forma, ainda que com algumas ressalvas, é com elas que se conta. O mais importante, porém, é que o fosso de renda que separa os trabalhadores rurais dos urbanos alargou no ano passado, quando a crise atingiu o país de forma patente no último trimestre. A renda dos camponeses cresceu 8% ante 8,4% do aumento de ganhos daqueles que trabalham nas zonas urbanas. Na China, a remuneração média de um empregado nas cidades é quase o quádruplo dos 50 dólares mensais ganhos pelos camponeses.

Em novembro, o governo lançou um pacote de estímulo de 585 bilhões de dólares para enfrentar a crise que dois meses antes começara a devastar o mundo financeiro (leia sobre os resultados desse pacote na reportagem que começa na página 88). Uma bolada e tanto, embora a grande questão seja quanto de dinheiro novo entrou no pacote. O número mais provável, segundo se acredita no Ocidente, é 185 bilhões de dólares – o resto já estava previsto. Mas nunca se saberá ao certo: a transparência não é mesmo a característica mais marcante de governos autoritários. O que importa para consumo externo e para a população chinesa é que o governo reagiu rápido.

Sean Gallup/Getty Images

Fábrica do mundo
Produtos chineses de alta tecnologia numa feira de eletroeletrônicos em Berlim: sem competidores

Essa foi a razão de o presidente do BC da China ter louvado as vantagens e a "superioridade do sistema chinês" – também autointitulado "socialismo com características chinesas" – sobre as democracias representativas. Nesse sentido, foi uma resposta rápida e sem contestação, como em qualquer regime autoritário. Discussões e negociações no Congresso para aprovar um pacote de recuperação da economia ou críticas ácidas da imprensa, como é obrigado a ouvir o recém-empossado Barack Obama? Nem pensar. Praticamente, a unanimidade das dezenas de chineses com quem conversei em diversas cidades do país repetiu com pouca variação a frase "o governo quer acabar com a crise, vai acontecer". No mundo real, até o gigantesco retrato de Mao Tsé-tung na entrada da Cidade Proibida sabe que não é assim. O governo dizia, por exemplo, que o país cresceria 9,7% no ano passado. Cresceu 9%.

Há um manifesto perigo se ideais de regimes "superiores" de partido único prosperarem mundo afora. Por muito tempo, o Ocidente imaginou que a liberdade econômica que os chineses experimentam de modo crescente há três décadas pudesse resultar no futuro em liberdade de expressão e política. Até agora, nada autoriza que se continue pensando nessa direção, pelo menos a médio prazo. A China assume-se como potência neste início de século, mas sem abrir mão (muito pelo contrário) de um dos três princípios essenciais do modelo fixado por Deng Xiaoping – o de que o PCC deve ter o controle absoluto do sistema político. Um controle que completa sessenta anos em outubro. Os outros dois princípios são: a eficiência cada vez maior da economia para produzir riquezas e o controle direto e um papel relevante do estado na economia.

O ano de 2009 será talvez lembrado no futuro como marco da entronização da China no posto de potência mundial. Ou o ano em que a terceira maior economia do mundo colocou a segunda, o Japão, na alça de mira e estabeleceu com a primeira, os Estados Unidos, uma relação tão simbiótica que o destino de uma se amarrou ao da outra. 2009, o ano do G-1.

A prova de fogo do dragão

A crise mostra a sua cara lá, sim. Mas é para o
país que mais dinheiro tem para investir que
todos olham com curiosidade e esperança: a China
é o motor da recuperação da economia mundial


Lauro Jardim, de Pequim

Anderson Schneider

Se Maomé não vai à montanha...
A Orient é a maior trading de Xangai. Pertencente ao governo da cidade, faturou 5,3 bilhões de dólares em 2008. E está sofrendo com a crise nas exportações. A queda no primeiro trimestre foi de 30% em relação ao mesmo período de 2008. Os compradores dos EUA, da Europa e do Japão, seus principais mercados, adiaram as viagens de rotina para a China. Cai Hongsheng, presidente da Orient e dirigente do Partido Comunista na cidade, resolveu contra-atacar: "Comecei a mandar nossos homens ao exterior. Se eles não vêm, vamos a eles". Por enquanto, sem resposta positiva: em abril, não houve sinais de melhora do quadro. "Provavelmente, estamos nos piores dias da crise", diz, com ar grave. Questionado sobre uma possível onda de protecionismo econômico dos americanos, Hongsheng devolve: "Eles é que inventaram o conceito de livre-comércio. Seria ridículo e injusto com a China e com os outros países emergentes pedirem proteção agora".




Enquanto caminha pela monumental linha de produção da Hang Liu, o presidente da empresa, Huang Jun, um executivo afável e sempre sorridente, exibe com orgulho a maior fábrica do mundo de acabamento de tecidos para cama. Aparentemente, está funcionando a todo o vapor. Quando pergunto se estão produzindo tudo o que podem, Huang fica sério. Em tom de lamento, diz: "Até o ano passado, a unidade rodava 24 horas por dia, sete dias por semana. Agora, funcionamos apenas cinco dias". A Hang Liu, instalada na cidade de Jiangyin, a 150 quilômetros de Xangai, fabrica roupas de cama para as maiores marcas dos Estados Unidos. Para o país-sede da crise, vende 60% de sua produção. Há três anos, embalada por uma China que experimentou décadas de prosperidade ininterrupta e com sua capacidade de produção no limite do esgotamento, a Hang Liu investiu para dobrar seu parque fabril para os atuais 110 milhões de metros de tecido por ano. "É claro que me arrependi, mas agora não há mais o que fazer, exceto diminuir os custos e tentar encher meus bolsos de pedidos", afirma Huang. "Já começamos a redirecionar a produção para o mercado interno."

Esse é um dos retratos possíveis de como a crise penetrou no cotidiano dos chineses. Os ocidentais costumam rir quando se fala da crise econômica num país cujo PIB crescerá neste ano entre 6% (segundo vários economistas) e 8% (como almeja o governo). De fato, quem percorre despreocupadamente as ruas de Pequim, Xangai ou qualquer outra grande cidade chinesa não vê sinal de anormalidade a olho nu. Que ninguém se engane, no entanto: o furacão econômico que fez seus estragos mais visíveis nos EUA, na Europa e no Japão deu as caras também na China. Nem poderia deixar de ser diferente num país tão afetado pela globalização – aliás, o que mais se beneficiou dela até aqui. Crescer entre 5% e 8% poderia ser o paraíso nos EUA ou na Europa, mas, para as empresas que investiram imaginando um crescimento de dois dígitos, é excesso de capacidade ociosa na certa.

Anderson Schneider

A fábrica fantasma
Quem passeia pelos 45 000 metros quadrados onde estão as quatro linhas de produção da Doublecat, fabricante de lençóis localizada na cidade de Changshu, a 105 quilômetros de Xangai, nota que tecidos de todas as cores ainda estão esticados no moderno maquinário europeu. Assim como os carretéis continuam nas centenas de máquinas de costura de acabamento e as planilhas de produção permanecem cuidadosamente arrumadas em cima das mesas. Apesar dessa aparente normalidade, é uma fábrica fantasma: não há alma viva por lá desde dezembro, quando os últimos 500 trabalhadores foram demitidos e a Doublecat fechou as portas, golpeada pela crise – apenas oito meses depois de ser aberta. A fábrica, com capacidade para produzir 30 milhões de metros de lençóis por ano, tinha os EUA como mercado prioritário. Sua paralisação revela como a crise bate às portas até mesmo de uma empresa que pagava o equivalente a 1,30 dólar a hora trabalhada, contra os 15 dólares pagos pelos mesmos sessenta minutos na indústria têxtil americana.

A China envia sinais aparentemente contraditórios ao Ocidente. Ora parece que sua recuperação já se iniciou e a crise ficou para trás – o volume recorde de carros vendidos no primeiro trimestre, que elevou a China ao posto de o maior mercado do mundo, e o crédito concedido pelos bancos neste início de ano, quase igual ao dos doze meses de 2008, são dois bons exemplos de reabilitação. Assim como há indicadores que apontam para o lado oposto – como os cinco meses de queda nas exportações ou o estoque de apartamentos e salas de escritórios novos que teima em não diminuir. Para que se entenda melhor a crise chinesa, é preciso, antes de tudo, jogar no lixo a falsa noção de que a exportação é o primeiro, o segundo e o terceiro pilar de sustentação da economia chinesa. Não é. A exportação desempenha papel importante (36% do PIB), mas divide esse pódio com a construção pesada e a construção civil – que, aliás, empregam muito mais. Juntas, dão trabalho a 77 milhões de chineses, o equivalente a toda a população economicamente ativa do Brasil. Desses 77 milhões, 60% vieram do campo em busca de salários melhores.

Anderson Schneider

De salto baixo para enfrentar a crise
Se a China é o motor da indústria calçadista (produz 63% dos 13 bilhões de pares fabricados por ano no mundo), Guangdong é o centro de propulsão desse setor. Instalado há quinze anos na cidade, o gaúcho Ricardo Corrêa da Silva é um gigante em terras chinesas: é dono da Paramont, que fabrica quase 40 milhões de pares de sapatos femininos por ano, quase tudo exportado para os EUA. Nascida no Vale do Sinos, no Rio Grande do Sul, e hoje migrada para o sul da China, a Paramont viu muitas concorrentes fechar as portas nos últimos meses. Em janeiro, as encomendas caíram 25% – o que, anualizado, representa um baque de quase 10 milhões de pares a menos. A queda repetiu-se em fevereiro e março. E a Paramont teve de se reinventar. Corrêa da Silva diz que antes demorava dois meses entre o pedido do importador americano e o embarque da mercadoria. Agora, faz o mesmo em vinte dias. Foi obrigado a ganhar agilidade: "Os clientes estão mais conservadores, fazendo pedidos menores para não estocar", conta. Vai apostar também, pela primeira vez, no mercado chinês. Está otimista? "Não tenho muita opção", diz.


A construção pesada vai bem, obrigado. Em novembro, o pacote do governo para enfrentar a crise apontou o setor de infraestrutura como chave para vencer as dificuldades. O governo separou 265 bilhões de dólares, 45% do total do pacote para gastar entre 2009 e 2010 nessa poderosa alavanca. É dinheiro. Corresponde ao PIB da Argentina. E, por isso, tome estradas, pontes, viadutos, metrôs, aeroportos etc. que continuam rasgando o território chinês em supersônica velocidade pré-crise (velocidade chinesa pré-crise, ressalte-se). Segundo um estudo da consultoria americana McKinsey, nos próximos quinze anos serão pavimentados 5 bilhões de metros quadrados de estradas e 28 000 quilômetros de trilhos de metrô na China – quase 28 vezes a malha do metrô de Nova York. Trabalha-se sete dias por semana nessas obras, inclusive à noite. No entorno de qualquer cidade média ou grande, não há como andar 1 quilômetro de carro sem avistar tratores, guindastes, vigas, poeira e gente à beça na labuta. Num domingo do fim de março, Donghiu Wang, de 30 anos, era um dos mais de 100 operários que circulavam dentro de um monumental canteiro de obras, colado a uma rodovia que leva ao aeroporto da cidade. Trabalhava para erguer um mega-arco rodoviário, com pelo menos oito viadutos que se cruzam entre si. Deu de ombros quando questionado se o desemprego o inquietava. "Esta crise não tem nada a ver com a China", disse. Apoiou-se numa pá com cabo de bambu e contou que está há dois meses no trabalho atual, tem mais três meses pela frente e já tem promessa de entrar em outra obra bancada pelo governo.

Para aqueles que não estão dentro dos setores que o governo elegeu, a história é outra. Essa realidade é visível num moderno e confortável estádio de futebol em Xangai, o Xuhui, onde numa manhã fria de sábado se realiza uma das centenas de feiras de empregos que germinam pelo país. Todas organizadas pelo governo. São 8h15, e uns 200 candidatos começam a formar uma fila. Basicamente, há ali recém-demitidos e jovens tentando o primeiro emprego. Os portões de ferro do estádio vão se abrir dentro de 45 minutos. As pessoas correm para pegar seu lugar na fila. Duas horas depois, cerca de 20 000 já estão circulando pelos 200 estandes em que as empresas oferecem vagas. Os candidatos se inscrevem, mostram o currículo e esperam ser chamados. O torneiro mecânico Duan Yuanhai, de 22 anos, está há um mês desempregado. Trabalha desde os 18 anos e é a primeira vez que vive essa situação. Como fazia todos os anos, largou o emprego às vésperas do Ano-Novo Chinês para ficar algumas semanas com a família, numa província distante três horas de Xangai. Pretendia voltar ao mesmo emprego, exatamente como fizera nos três anos anteriores – um comportamento trivial no país. Só que, desta vez, o patrão fechou a sua vaga e a de outros colegas que agiram da mesma forma. "Não consegui voltar", diz Duan em sua terceira visita à feira. Alguns metros adiante, Zhou Chuncheng, de 26 anos, preenche mais uma ficha de inscrição. Há mais de um mês procurando emprego, já peregrinou por várias feiras. O químico Zhou, que trabalhava numa fábrica de tingir tecidos em Xangai, culpa a crise pela dificuldade inédita de se recolocar: "Antes, todos pulavam de emprego em emprego, mas agora ninguém quer sair de onde está. Isso dificulta a abertura de novas vagas".

Anderson Schneider

Luz verde no Oriente Médio
"Meu primeiro trimestre foi 10% melhor que o do ano passado", diz Jian Yu Chen, 48 anos, dono da Eboy, que fabrica 30 milhões de lâmpadas por ano, tanto para grandes marcas como GE e Osram como para dezenas de empresas desconhecidas. Como assim? E a crise? Afinal, 99% das lâmpadas que saem da Eboy são exportadas. Chen explica que em meados de 2008 conseguiu entrar no mercado do Oriente Médio, o que compensou a queda de 50% das encomendas que, até 2007, vinham dos EUA. "Foi uma saída para quem estava sem saída", afirma, pragmático. Assim como quase todos os empresários entrevistados para esta reportagem, Chen diz que as exportações para os Estados Unidos sofreram seu primeiro baque no segundo semestre de 2007 – e não após o colapso do Lehman Brothers, em setembro do ano passado. O bom trimestre significa que Chen verá a crise de camarote? Não é bem assim. "Fábricas fecharam nas redondezas e muita gente vem pedir emprego", diz. Pela segunda vez em cinco anos, o prudente Chen não investirá na ampliação da Eboy. E assim dá sua contribuição para que a China deixe de crescer os dois dígitos a que se acostumou.

Vários degraus acima, o fenômeno se repete. O presidente da InBev na Ásia, Miguel Patrício, tem se beneficiado da baixa rotatividade. Responsável por tocar 35 fábricas só na China e há um ano e meio no país, até o início da crise Patrício ressentia-se de não conseguir montar uma equipe de alta gerência e de diretores que incorporasse a marcante cultura empresarial da InBev. "Não dava tempo. A rotatividade era enorme. Recebiam propostas maiores em quantidade espantosa e davam adeus", diz. "Desde dezembro, no entanto, ninguém pediu demissão." A indústria cervejeira pode dar uma medida de como a crise se espalha por outros setores numa economia globalizada. Não está se falando das vendas, que começaram a cair em outubro e até agora não se recuperaram – mas da cadeia produtiva do setor. Com a crise, o malte europeu ficou mais barato que o produzido na China. Ato contínuo, a InBev chinesa passou a importar malte da Europa para usar em parte de sua produção de cerveja. A consequência óbvia: parte do malte chinês encalhou. E, por isso, deve ter agricultor chinês mais pobre. Ou diminuindo também o preço do seu produto.

Anderson Schneider

Investindo na baixa
Liqun Wang, presidente do fundo de private equity chinês Stone Capital, serve-se de água quente, quase fervendo (algo comum na China), bebe um pouco e diz que o momento é excelente para investir: "As empresas que sofreram o impacto da crise são um dos nossos alvos. O valor das ações caiu: é hora de comprar". O fundo, criado há seis meses em Xangai por dezesseis capitalistas chineses, mira também empresas voltadas para o mercado interno. Já comprou duas, aliás. Não só porque é um motor no qual o governo quer botar mais combustível, mas porque é onde Wang trafega bem – tem boas relações com o governo. Assim como boa parte dos empresários chineses, Wang teve uma passagem pelo setor público. Antes de comandar o Stone Capital, dirigiu a estatal que cuida dos transportes de Xangai (de trem a ônibus, de metrô a táxi). Wang tem, portanto, um ótimo guanxi, que é como os chineses apelidam o misto de poder de influência, teia de relações e ajuda aos amigos que facilitam as coisas no país.

Assim como estão encalhados apartamentos e salas comerciais. A consultoria Dragonomics calcula que a China tenha 90 milhões de metros quadrados de casas novas ainda nas mãos dos empreiteiros – é uma área do tamanho de uma cidade como Vitória, a capital do Espírito Santo. Todas erguidas em 2008. Um total de 820 000 residências. Nesse ano, o total de área construída vendida de residências caiu 20,3%. Estima-se que o mercado vá demorar entre quinze e vinte meses para digerir tanto imóvel vazio. Não é à toa que a rede inglesa de material de construção e decoração B&Q já anunciou que deve fechar neste ano 22 das 63 lojas que tem na China. "Cancelei todos os projetos imobiliários que ainda não tinham saído do papel, todos em Xangai", afirma Zhaobai Jiang, presidente do grupo PengXin, que investe em construção de imóveis residenciais e comerciais na China e em mineração e soja na América Latina, Austrália e África. Enquanto circula por sua monumental sala, onde se podem ver desde uma tartaruga empalhada até um vistoso aquário no qual convivem peixes amazônicos como tucunaré, pacu e aruanã, Jiang informa também que engavetou o projeto de um hotel de cinco estrelas. Jiang, de 44 anos, manteve, no entanto, os quatro projetos de construção cujas obras já haviam sido iniciadas. Mas as vendas andam em marcha lenta. Um deles, o Above on the Bund, foi lançado em maio passado. É um monstrengo de 35 andares todo de granito preto por fora e com uma vista espetacular para o Pudong, a região onde estão construídos os arranha-céus-símbolo de Xangai. O prédio está quase pronto. Mas ainda tem muitas unidades à venda. Não é coisa para qualquer um: um apartamento entre 300 e 500 metros quadrados está custando 20 000 dólares o metro quadrado.

A construção civil é, portanto, uma das faces mais vistosas da crise chinesa. Em janeiro e fevereiro, as vendas de casas subiram, é verdade. Mas o ritmo das obras diminuiu 15% no primeiro bimestre. Como assim? Simples: as construtoras estão desovando estoque. Ou seja, a retomada nas vendas ainda não se traduziu em novos empregos. Para piorar, Cao Jianhai, economista de um instituto de planejamento oficial, prevê que o preço dos imóveis residenciais cairá 45% nos próximos dois anos em comparação com o que vinha sendo cobrado no fim de 2008. Vale a ênfase: se esse mercado crescer, a economia chinesa se expandirá de verdade. Esse é um setor vital que poderia fazer o PIB chegar aos 8% de crescimento que o governo quer ou patinar nos 6% que alguns analistas apostam. Muitos acham que no segundo semestre haverá uma retomada consistente – repita-se: "acham", ninguém tem certeza de nada, apesar de alguns sinais.

São duas Chinas convivendo, portanto. A que puxa o PIB para baixo. E a China que está dando sinais de crescer – e cresce. A Embraco, fábrica de compressores para refrigeradores, originalmente brasileira e hoje controlada pela americana Whirlpool, está no segundo time. Desde 1995 com uma fábrica em Pequim, a Embraco vive um momento especial nesta crise: vê os problemas de longe, bem de longe. Tem três linhas de produção operando a 100% da capacidade. A linha mais recente foi inaugurada há três meses: aumentou 33% a capacidade instalada, que agora é de 7 milhões de compressores por ano. "Teremos um ano excelente, vamos crescer", diz João Carlos Lemos, diretor-geral da subsidiária chinesa da Embraco há cinco anos. Não há algo errado? Não. A Embraco foi bafejada pelo pacote do governo para incentivar o consumo de bens como geladeiras pelos camponeses.

Anderson Schneider

Ele entende de Wall Street
Confortavelmente acomodado numa das dezoito cadeiras de espaldar largo e alto que se espalham pela monumental sala de reuniões da prefeitura de Jiangyin, o vice-prefeito Gao Pei admite que a crise afetou as exportações das quase 20 000 indústrias da cidade, a maior parte delas ligada aos setores siderúrgico, têxtil e de máquinas. Jiangyin tem 1,2 milhão de habitantes e em 2008 exportou 20 bilhões de dólares – o mesmo, por exemplo, que o Equador, que tem uma população doze vezes maior. Pei repete dois mantras que se ouvem a todo momento na China: que o pacote de 585 bilhões de dólares do governo para reativar a economia será bem-sucedido e que uma das soluções para escapar da crise é redirecionar a produção para o mercado interno. Até aqui, nenhuma novidade. O pior já passou, então? É aí que Pei, vice-prefeito de uma cidade distante três horas de carro de Xangai, surpreende e desanda a detalhar os problemas dos bancos americanos: "Depende de Wall Street. Depende dos bancos de investimentos que detêm fundos que aplicam no mundo inteiro. O que está acontecendo aqui é impactado por essa situação".

A bordo do pacote de estímulos, alguns perigos espreitam a economia chinesa. Um deles é a superprodução, que pode ser o corolário de um erro de cálculo nos investimentos para a reativação da economia. Hoje, o total de capacidade de produção da China excede a capacidade de consumo em 10% do PIB. No passado, isso nunca foi problema: o excedente era disputado a tapa pelos EUA, pela Europa e pelo Japão. Agora, não mais. O que aconteceu nas siderúrgicas chinesas, que aumentaram a produção em fevereiro, é um exemplo desse risco. Pelo ritmo daquele mês, a China fabricaria 517 milhões de toneladas em 2009. Em 2008, o maior fabricante de aço do mundo produziu 500 milhões de toneladas. Sobrou aço. O preço caiu. Sob esse ponto de vista, não são só os EUA que precisam de ajustes – a China também. Se os EUA tiveram crédito abundante para torrar em consumo, os chineses tiveram crédito farto para produzir. Se se continuar a dar crédito, haverá superprodução. "Essa é uma preocupação do governo", admite o diretor adjunto do Ministério do Comércio, Shen Danyang.

Anderson Schneider

De celular e emprego novo
Aos 22 anos, mas parecendo bem menos, Shixiang Yan viu a crise econômica perigosamente rondar sua vida sete meses atrás. Mas escapou do pior. Ela trabalhava numa linha de montagem da fábrica da Panasonic em Pequim. Era o seu primeiro emprego. O contrato, no entanto, não foi renovado – assim como o de várias amigas. Pouco depois, porém, soube que a Embraco, fabricante de compressores para refrigeradores, estava ampliando sua fábrica: abrira vagas para uma nova linha de montagem para aproveitar o estímulo (crédito farto e impostos menores) que o governo está dando aos camponeses para comprar geladeira. Empregada novamente, Shixiang adquiriu seu primeiro celular no mês passado e nem pensa em voltar para a casa dos pais, em Shandong, a 380 quilômetros de Pequim. "Aqui é muito melhor", diz.


A primeira consequência da superprodução em alguns setores é a queda de preços. Assim, o já barato made in China será exportado por um valor ainda menor. Nesse ponto, a China pisa em ovos: não pode fazer qualquer coisa para exportar mais. Tal atitude levantaria a bandeira do protecionismo do resto do mundo. A China pode falar mais alto nesta nova ordem mundial, mas não pode gritar muito – os EUA são, mesmo com a perna quebrada, de longe seu maior mercado. Não é difícil imaginar as vozes protecionistas se agigantando mundo afora. É tudo de que a China não precisa. "O protecionismo seria desastroso para a China", diz o americano Michael Pettis, professor de finanças da Universidade de Pequim. "Forçaria o país a absorver toda essa produção internamente." Uma substituição que, apesar dos esforços do governo, é impossível de ser feita a médio prazo.

O discurso de que vai redirecionar as exportações para o mercado interno é muito fácil de falar, mas não se faz estalando os dedos – por mais que os dedos do governo chinês quando estalem sejam como ordem para o país. A taxa de poupança dos chineses só aumenta. Era de 37% do PIB em 1998 e em 2007 subiu para 59% (a dos EUA é de apenas 14% do PIB). "Talvez a mais elevada de todos os tempos em qualquer economia", espanta-se Martin Wolf no livro A Reconstrução do Sistema Financeiro Global.

Não é uma transição simples. Primeiro, há um fator cultural. O confucionismo não estimula a extravagância consumista. Há outro dado objetivo também que atua como um muro para frear o consumo: a rede de segurança social é precária. Não se tem assistência médica gratuita. O chinês não tem aposentadoria garantida do estado. Sobretudo por isso, ele poupa. Nos últimos anos, o governo tem investido na rede de seguridade. Planejam-se megainvestimentos para os próximos três anos. Para citar um exemplo: o governo anunciou que até 2012 vai erguer 29 000 hospitais e postos de saúde, tanto no campo como nas áreas urbanas (o Brasil possui 2 908 hospitais públicos municipais, estaduais ou federais). Mas não se muda uma cultura tão arraigada de uma hora para outra.

A China possui, contudo, outro ativo em quantidade inexistente no mundo, além de escasso no mercado: confiança no futuro, algo que o primeiro-ministro Wen Jiabao qualificou como "mais importante que ouro ou dinheiro". Segundo uma pesquisa do Boston Consulting Group, 80% dos chineses dizem que vão manter ou aumentar seus gastos em 2010. Esse porcentual é quase o dobro do verificado nos EUA e na Europa. A pesquisa revela ainda que, enquanto 23% dos chineses acham que a economia vai piorar em 2009, 49% e 57% dizem o mesmo na Europa e no Japão, respectivamente. As três décadas de crescimento espetacular dão à população chinesa uma sensação de segurança que não se encontra em nenhum outro país.

Anderson Schneider

O irlandês e a fase purificadora
Que ninguém fale em tempo ruim perto do irlandês Liam Casey, dono da PCH International, fornecedora de suprimentos para quase todos os gigantes americanos e europeus de eletroeletrônicos. Sua empresa faturou 120 milhões de dólares em 2008 e, com base nas suas projeções, fechará este ano 15% maior. Agitado, falando pelos cotovelos e autorreferente o tempo todo, Casey anda de um lado para o outro em sua sala, no alto de um prédio em Shenzhen, cidade onde são produzidos 80% dos eletroeletrônicos do mundo. Não fala uma palavra de chinês, mas transborda entusiasmo quando se refere ao país em que mora há treze anos. "A China não tem competidores na Ásia. Só aqui se podem fazer as coisas com qualidade. É o único país em que faço uma encomenda grande e em 48 horas posso embarcá-la para os Estados Unidos ou para a Europa." Mas e a crise? "Claro que existe e que há riscos. Mas esta crise é purificadora. As empresas ruins vão fechar, e a China dará um novo salto."

O colosso chinês tem problemas – que só serão resolvidos totalmente quando os países desenvolvidos, para onde vai o grosso de suas exportações, voltarem a andar com as duas pernas. É, contudo, para onde o mundo hoje olha com esperança de uma retomada mais rápida do crescimento. Não só com esperança, mas com certa excitação. Sozinha a China não tem condições de salvar o mundo, mas já tem tamanho para se apresentar como a parte principal da solução.