O Estado de S. Paulo - 25/05/2009 |
De uma coisa pode-se ter certeza firme em meio à turbulência que ainda assola o cenário da economia e das finanças internacionais: o mundo que sairá dela não será o mesmo que nela entrou, ainda que ela seja curta, como já nos anima um dos gurus mais prestigiados do momento, o economista Nouriel Roubini, que acertou na previsão do desastre e, esperemos, acerte também com os seus vaticínios de normalização. Dizia ele, na semana passada, que a recessão nos Estados Unidos está próxima de acabar, embora as crises bancária e de crédito se prolonguem por mais algum tempo, dois ou três anos. Uma das diferenças que apresentará o mundo que vai emergir da crise diz respeito exatamente ao comportamento e papel dos Estados Unidos nas finanças internacionais. Desde o final da 2ª Guerra Mundial e mesmo desde um pouco antes, os Estados Unidos assumiram um papel absolutamente desmesurado no palco das finanças internacionais e, a par disso, uma dose crescente de irresponsabilidade monetária e fiscal que é hoje uma das principais causas da instabilidade e da insegurança que grassam entre investidores, assalariados e donas de casa. Os governantes americanos, ao contrário do que se costumava pensar, não são infensos à demagogia e aos rapapés para a patuleia, em detrimento do futuro. As recomendações que seus consultores financeiros sempre fizeram aos governos dos outros países - de cautela, moderação, equilíbrio fiscal, etc. - nada tinham que ver com as práticas do seu próprio governo. O presidente Lula estava certo quando, no começo da crise, recriminava, de maneira um tanto rombuda e atrapalhada, como sempre, a atitude de aconselhamento soberbo dos países ricos em relação aos países emergentes, quando exigiam dos governos destes últimos uma qualidade de gestão que nem de longe exibiam. Vários governantes americanos devem ter percebido, ao longo dos últimos 50 anos, que a imoderada gastança e o consumismo do seu povo - na esteira, é certo, do enriquecimento do país - podiam levar ao que se vê agora: uma imensa e impagável dívida externa e um imenso, igualmente impagável, endividamento interno, gerador de déficits fiscais colossais. Mas nenhum deles teve ânimo para adotar políticas de governo que contivessem o ímpeto perdulário do americano médio e o estimulassem a viver de maneira um pouco mais prevenida, a fim de garantir maior segurança no futuro. Apenas o presidente Bill Clinton chegou a pensar um pouco no assunto - tanto que estabeleceu parâmetros de política econômica governamental que viabilizariam déficits federais decrescentes em determinados prazos. Seu sucessor, todavia, pensando em ficar na história como aniquilador do terrorismo e dos "eixos do mal" que vislumbrava a esmo, tornou absolutamente incontrolável a gastança pública e aterradores, para o resto do mundo, os déficits norte-americanos, que, em síntese, formam o câncer disseminador das metástases da desordem financeira. Parece - vejam bem, apenas parece, por enquanto - que o novo presidente, Barack Obama, se não tem plena consciência do mal que a incúria de antecessores espalhou pelo planeta, pelo menos já se alertou para alguns aspectos importantes do problema. E, diga-se de passagem, seu secretário do Tesouro, Timothy Geithner, não parece ter dúvida em relação ao fulcro da questão. Na última quinta-feira, em entrevista à agência Bloomberg, dizia que sua meta é derrubar para 3% do PIB o déficit dos Estados Unidos, que está previsto em 12,9% do PIB, em 2009. Conseguirá? Bem, se conseguir, será uma diferença importante do novo mundo pós-crise, em relação ao atual, que assim estará, a prazo médio, numa rota de estabilidade financeira bem mais sustentável. Na quinta-feira, o rumor de que as agências de classificação de risco poderiam baixar as notas de alguns países ricos, começando com a da Inglaterra, provocou abalos no mercado, superados mais tarde pelas assertivas de Geithner. São fatos que comprovam duas coisas: 1) O agudo nervosismo dos mercados mundiais; e 2) a importância crucial da questão dos déficits dos Estados Unidos e de declarações de autoridades americanas nesse nervosismo todo. Em consequência desse estado de coisas, prolifera a ideia de independência em relação ao dólar americano - que é outra das diferenças que o novo mundo pós-crise poderá exibir, em contraste com o atual. Zhou Xiaochuan, presidente do banco central da China, maior detentor mundial de reservas em dólares, já deixou claro que preferiria ter uma nova moeda funcionando como reserva internacional, algo como os direitos especiais de saque (DES), uma referência contábil adotada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que lembra um pouco a URV brasileira, adotada por FHC quando ministro da Fazenda e que abriu caminho para a implantação do real. O governo Lula pegou a deixa e já deu um primeiro passo na direção de tentar desvencilhar o mundo do dólar, propondo que Brasil e China estabeleçam um protocolo de comércio mútuo pago nas respectivas moedas: renminbi/real. O mesmo tipo de acordo, aliás, o Brasil já havia proposto à Argentina. O jornal francês Le Monde, atento a essas iniciativas, já fala num provável "fim do reinado do dólar" e vai em frente, especulando que, sendo Brasil e China dois ases dos Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia e China), a adesão de Moscou e Nova Délhi a esse movimento poderia dar surgimento ao bloco dos "4Rs" - a saber, real-rublo-rúpia-renminbi - e assevera que o fim do dólar, embora lento, "não é menos inelutável". Descontados os devaneios e as ilusões de noiva, o mundo precisa pôr na agenda de debates o quesito de uma nova unidade de reserva, mais estável e confiável do que a moeda americana, que, como diz Xiaochuan no site do Banco Popular da China, tem de ser "desvinculada de nações individuais". |