quarta-feira, abril 22, 2009

Míriam Leitão Déficit democrático


A democracia brasileira está funcionando muito mal. Prova disso é a estranha decisão do Judiciário de que o não eleito seja empossado nos governos dos estados. Para ter uma ideia do grau de esquisitice, é como se, no impeachment do Collor, o vice Itamar Franco tivesse sido afastado também, e Lula fosse empossado. Nos casos de vacância, há caminhos constitucionais que não a posse do derrotado.

Dois governadores perderam o cargo, outros seis aguardam julgamento. Ao fim, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) podem criar a grotesca situação de ter oito derrotados assumindo os cargos para os quais não foram eleitos. A interpretação da Justiça eleitoral é a subversão do princípio da linha sucessória, e um golpe na vontade do eleitor.

Mesmo sem considerar os méritos do caso maranhense, mesmo sem levar em conta a declaração do governador deposto Jackson Lago de que é estranho “no Maranhão falar em abuso de poder contra os Sarney”, ainda assim, a posse da governadora Roseana Sarney é uma decisão espantosa. O entendimento torto está virando jurisprudência, porque houve anteriormente o caso da Paraíba.

Imagine que a Justiça considere que houve abuso de poder nas muitas vezes em que o presidente Lula misturou o cargo de presidente com a campanha para reeleição em 2006. Se ele fosse afastado, o que aconteceria? O vice tomaria posse. Mas imagine que a Justiça considere que o vice foi beneficiado pelo mesmo processo que elegeu o titular. Quem assumiria? O derrotado Geraldo Alckmin? Se a Justiça fizesse isso, seria um desrespeito à vontade popular que se manifestou majoritariamente em favor da reeleição.

O que aconteceria seria a posse do presidente da Câmara, e, no impedimento deste, o presidente do Senado, e, na falta deste, o presidente do Supremo. É a linha sucessória normal. Goste-se ou não dos atuais ocupantes dos cargos. Nos estados não pode ser diferente: é governador, vice, presidente da Assembleia, presidente do Tribunal de Justiça. Outro caminho poderia ser a convocação de novas eleições. Mas a posse do derrotado, jamais!

A presunção da Justiça Eleitoral para tomar a decisão é que a irregularidade permitiu um número tal de votos a mais para o infrator e que isso o levou à vitória. Ora, a Justiça não tem como presumir qual percentual de votos decorre de uma irregularidade. Portanto, se a eleição está viciada, siga-se a linha sucessória.

No escândalo das passagens, o que espanta mais é o fato de os deputados sequer entenderem o que a população está condenando. Essa falta de coincidência de valores éticos entre representados e representantes é uma fratura exposta. Não basta, senhores parlamentares, cortar em 20% a “cota” de passagem, mas sim entender que o direito de ter a passagem paga pelo contribuinte se esgota em uma única situação: o titular do mandato viajar entre seu reduto eleitoral e Brasília, ou viajar a trabalho pelo Brasil ou para o exterior. A “cota” não pode ser usada para férias ou viagens de lazer, nem mesmo pelo titular. Não é milhagem, é prerrogativa de representação a ser exercida unicamente por quem recebeu votos para isso.

Já que os deputados e senadores estão com uma certa dificuldade de entender o óbvio, vamos fazer uma explicação tatibitate: imagine, caro parlamentar, que qualquer funcionário de empresa privada queira viajar com a passagem paga pela empresa. Em que situação ele pode fazer isso? Se for viagem a trabalho. Ele, sozinho, pegará o avião e mandará para a empresa apenas as despesas relacionadas diretamente à missão profissional. Se fizer diferente, será chamado a se explicar à contabilidade. Se essa pessoa quiser viajar com cônjuge e filhos para a Disneylândia, terá que comprar sua própria passagem, arcar com seus próprios custos.

A regra é, portanto, simples: o empregador ou o contribuinte não têm qualquer obrigação de estender aos familiares de empregados e parlamentares a cobertura de custos de viagens. Se, por acaso, a empresa decidir que para alguns dos seus executivos ou funcionários ela paga, inclusive, viagens de férias da família toda, isso entraria na categoria de salário indireto, e o contribuinte pagaria imposto sobre isso. Experimentem perguntar à Receita. Se os representantes do povo imaginam o contrário, é porque estão incorrendo naquele velho vício da elite brasileira: o patrimonialismo, considerar como sua propriedade os bens da sociedade.

O Brasil tem convivido com espantosos descuidos com o dinheiro público, com os direitos dos cidadãos, com a separação entre público e privado. Não é assim que se constrói uma República.

Certos fatos são desanimadores. O presidente Lula, na semana passada, disse: “Ninguém aqui é freira e santa. Não estamos num convento.” A frase é um passaporte para a aceitação das irregularidades das autoridades como fato da vida. Mas não causou reação especial. Lula disse isso numa reunião dos três poderes da República, cujos líderes deveriam ter a obrigação de jamais aceitar a ambiguidade nas questões de conduta. Democracia não nasce pronta. Está sempre em evolução. Certas notícias mostram que o Brasil anda escolhendo o retrocesso.

Com Leonardo Zanelli