sábado, abril 25, 2009

MILLÔR

DIÁRIO DO PENSADOR
SEM FRONTEIRAS

"O coração tem razões que a razão desconhece." Tudo bem, doutor Pascal, mas não esqueça que a razão tem emoções de que o coração nem suspeita.

"O inferno são os outros." Sartre dizia isso, com sua habitual falta de autocrítica. Mais racional, completo: "Certo, messiê, mas falta dizer: ‘O céu também’."

"Ouço a toda hora pobre e rico, preto e branco, brilhante e medíocre repetindo: ‘Da morte ninguém escapa!’"

Mentira. Da morte todo mundo escapa. O morto nunca sabe que está morto. Quem tem medo da morte e faz essas frases está bem vivo. Da vida é que ninguém escapa.

"Não confie em ninguém com mais de 30 anos", slogavam os hippies. Mas eu me pergunto: "Por que confiar em dimenor?".

"Arte é coisa mental", pensava Da Vinci, mas como se explica tanto idiota pintando, compondo e tocando?

"Só sei que nada sei." Sempre me parece frase dita por um corno manso.

"Penso, logo existo." É frase de moribundo.

"À noite todos os gatos são pardos." Depois do sucesso dessa negada aí da timbalada, as meninas tão dando pra turma, adoidadas. E murmuram: "À noite todos os pardos são gatos".

Taqui, O Guarani, do Zé de Alencar. Mais que nacionalista – o que não chega a ser uma qualidade, a não ser quando os paraguaios nos guerreiam barbaramente. Zé também Indianista, movimento reivindicando pros silvícolas (por que não selvícolas, se eles são da selva e não silvam?) explorarem, quando todo mundo sabe que o natural é o índio ser o explorado? Como é que índio nu ia explorar o cara de gravata e colarinho?

Mas, seja como for, Zé é um escritor menos pretensioso do que o Joaquim, metido a filósofo – "Mais vale cair das nuvens do que de um terceiro andar", Deus do Céu! – e a entender de mulher embora ceguinho a respeito, não tendo percebido que Escobar traçava a mulher de Dom Casmurro.

Mas Zé de Alencar também tinha das suas. Veja como ele termina, gloriosamente!, o seu romance. Transcrevo:

"Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heroica, sobre‑humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura. Peri, alucinado, suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado, cingindo o tronco da palmeira nos seus braços hirtos, abalou‑o até as raízes.

Luta terrível, espantosa, louca, desvairada: luta da vida contra a matéria; luta do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade.

Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível: ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente.

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.

Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema: – Tu viverás!...

Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte. O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...

E sumiu-se no horizonte."

O público, isso que eles hoje chamam genérica e vulgarmente de galera, lê e bate palmas para essa descrição heroica feita pelo Zé de Alencar. Mas o Zé esqueceu, ou nem percebeu, que foi a primeira vez que um nativo começou a destruir o meio ambiente pra servir à classe dirigente.