Crime sem castigo Dora Kramer
O Estado de S. Paulo - 23/04/20
A restrição da cota passagens aéreas pagas pela Câmara para uso exclusivo do parlamentar em atividades relativas ao mandato e exposição de todas as informações na internet é um passo na direção do bom caminho.
Mas, como diz a cantiga infantil, a estrada é longa, o caminho é deserto e o lobo mau ainda está por perto.
Melhor teria sido se na semana passada a Mesa tivesse adotado as medidas sugeridas pelo Ministério Público, o bom senso e a noção dos limites entre o público e o privado. Soaria mais confiável a boa intenção do presidente da Câmara, Michel Temer, de conduzir um processo de reconciliação do Legislativo com "a opinião pública e a opinião publicada", anunciada ontem.
Ainda assim, com todas as reservas que decisões ditas moralizadoras tomadas pelo Congresso devem ser recebidas, algo se mexeu.
Há, não obstante ínfimo, um avanço em relação a declarações de "resistência a pressões da imprensa", de imposição de "castigos" como a anulação de boas medidas a cada vez que não merecessem elogios no noticiário e, principalmente, no que tange ao presidente Michel Temer, houve mudança no tom.
Pode parecer pouco, mas o constrangimento é um bom sinal. Ocorre que bons sinais, principalmente quando isolados e meramente sinalizadores não fazem acontecer o que se impõe: o freio seguido da arrumação.
E para que se arrume o que está desarrumado ainda há léguas em quantidade amazônica a percorrer antes de se considerar satisfatório o trabalho.
O passivo é imenso. Na Câmara e do Senado. O próprio Temer aludiu em sua nota oficial de segunda-feira a deformações em outros benefícios. Nas passagens mesmo se fez o mínimo, e todas as outras denúncias, sem exceção, continuam em aberto.
Falou-se em auditoria da Fundação Getúlio Vargas, mas o assunto morreu. Queda-se arquivado, pelo visto, na gaveta onde dormem outros dois "estudos" para redução de gastos contratados à mesma FGV em 1995, pelo Senado, e em 2006, na Câmara. Que tal desengavetá-los?
À restrição nas passagens necessariamente terão de se seguir outras medidas. Para enfrentar de fato o problema, os presidentes da Câmara e do Senado vão precisar firmar novas alianças. Premidos que são pela pressão da maioria silenciosa e transgressora, não conseguirão dar um passo adiante.
Isso não se faz com a proposta de aumento de salários. Muito menos engendrando formas de recompensar os parlamentares pela transparência exigida. Não se trata de uma troca, mas é assim que a coisa está sendo posta: moraliza-se de um lado, "em compensação" desmoraliza-se de outro.
É premiar quem transgrediu.
A transparência no uso do dinheiro do Orçamento destinado a sustentar o Parlamento é pré-requisito obrigatório e não moeda de escambo. Se os cortes resultarão em perdas, é este mesmo o espírito. Afinal, décadas de ganhos indevidos requerem algum tipo de punição. Assim a banda toca do lado de fora da Praça dos Três Poderes.
Um funcionário de empresa privada pego em tantos e tão flagrantes delitos seria, no mínimo, demitido. Por justa causa. Os deputados e senadores transgressores não podem ser processados por quebra de decoro, até por carência de julgadores abalizados.
Então, que ao menos arquem com algum ônus. Não lhes fará mal algum. Quem se sentir muito prejudicado financeiramente tem sempre a prerrogativa de mudar de atividade.
A parte mais difícil está por vir: a transposição dos obstáculos impostos pela própria corporação.
Sem a renovação das alianças internas, sem a alteração da correlação de forças de forma a abrir espaços aos melhores e relegar os piores ao terreno das insignificâncias, o Congresso não vence a mentalidade vigente expressa na contrariedade do líder do PTB, Jovair Arantes, ante a exigência de transparência: "É péssimo. Não gostaria de ser patrulhado. Não quero ser obrigado a colocar minhas coisas na internet."
Se um deputado chega à Câmara sem compreender a quem pertencem as referidas "coisas" postas à disposição de um agente público no curso de uma missão específica como o mandato eletivo, está no lugar errado ou não foi lá para fazer a coisa certa.
Esse tipo de raciocínio, diga-se, não vigora apenas no Congresso. Contamina todas as esferas de poder. Por exemplo: qual a diferença entre o PSOL financiar as viagens do delegado Protógenes Queiroz para a construção de uma possível candidatura e o presidente Lula patrocinar o périplo da ministra Dilma Rousseff pelo País para tentar construir um nome para se candidatar?
Na forma, apenas uma: o financiamento público da pré-campanha de Protógenes sai da Câmara e a verba de publicidade de Dilma sai do Palácio do Planalto.
Na essência, nenhuma, porque o dinheiro, grosso modo, tem origem no bolso da calça do homem e na bolsa da mulher que dão um duro danado para ganhar seus salários. Note-se: sem benefícios adicionais e religiosamente onerados com o desconto de impostos monumentais.