O Globo
O império da lei visa a evitar o estado de barbárie. Dita assim, como um eco do que já afirmaram muitos filósofos ao longo da História, a frase parece uma obviedade. No Brasil, não é, e o caso do garoto Sean é um bom exemplo.
Não pretendo nem de longe julgar aqui quem deve ter o direito sobre a guarda do menino, não seria capaz disso. Tenho apenas certeza de que os dois lados têm os seus motivos, e mais do que isso, têm experimentado imensa dor, angústia e sofrimento. O drama ganhou tal proporção que, imagino, nenhum veredicto será totalmente justo. É hoje uma situação humana no limite da barbárie: arrancar o garoto da família com quem convive nos últimos quatro anos ou negar ao pai biológico o direito de passar a vida ao lado do filho. Meu ponto é que essa história é exemplar: se a lei tivesse sido respeitada na origem, esse extremo teria sido evitado.
Para impedir que casos assim ocorram, em 1980 foi concluída a Convenção de Haia, da qual, hoje, são signatários Brasil e Estados Unidos. Expressamente, o objetivo da Convenção é “proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita”.
Trocando em miúdos, a convenção se aplica aos casos em que uma criança é levada para outro país, sem a concordância expressa daquele ou daqueles que têm a sua guarda. Note que a convenção não fala em nacionalidade, mas em país onde fica a sua “residência habitual”. Imagine que um menino nasça no Brasil, de pai americano e mãe brasileira e vá morar com eles na Alemanha, onde permanece por quatro anos, findos os quais, sem a autorização do pai, é levado pela mãe para o Brasil. Num caso assim, pouco importa a nacionalidade da criança, do pai ou da mãe: a Convenção determina que ela seja imediatamente devolvida à Alemanha, porque é ali a sua residência habitual. Mais do que isso, a Convenção não determina que o menino seja devolvido ao pai, mas que ele volte à Alemanha, inclusive na companhia da mãe se assim ela desejar, e que, ali, se instaure um processo civil para decidir com quem a criança ficará morando e o direito de visita da parte que perder a sua guarda.
Por que a convenção age assim? Em estrito benefício da criança, não dos pais. Quanto menos tempo uma criança passar fora de seu ambiente habitual, menos danos serão causados no relacionamento dela com o pai ou a mãe de cuja companhia ela foi afastada.
A convenção visa a manter vivos os laços entre a criança e os seus pais, e deixa para a Justiça local decidir se é o pai ou a mãe o mais bem equipado para viver com ela sob o mesmo teto.
Evitar danos nesse contato é tão importante que a convenção estabelece um prazo de seis semanas para que a criança seja devolvida. Independentemente das razões da mãe de Sean, se a Justiça fluminense tivesse sido fiel ao espírito da lei, mãe e filho teriam sido mandados de volta a Nova Jersey, onde ambos viviam havia quatro anos. A mãe não teria de se separar do filho, e os dois nem sequer teriam de voltar a viver ao lado do pai. Teriam apenas de estar em Nova Jersey, onde um processo definiria a guarda, o direito de visita e o local de residência da criança, que poderia ser inclusive o Brasil. Fossem quais fossem as razões da mãe de Sean, elas deveriam ser apresentadas, com provas, para a Justiça americana, que julgaria o caso, não porque os Estados Unidos sejam melhores do que o Brasil, mas porque é assim que determina a lei internacional. Se a Convenção de Haia tivesse sido respeitada lá atrás, mesmo que o pai tivesse perdido a guarda de Sean, seu relacionamento com ele teria sido preservado.
A convenção é muito clara em seu artigo 12. Diz que se houver decorrido menos de um ano entre a ida da criança, sem autorização, para outro país e a instauração de um processo legal pedindo a sua volta, o retorno deve ser imediato. Este era o caso de Sean, mas a Justiça brasileira, sucessivamente, reteve o menino no Brasil. Os juízes brasileiros, também em casos semelhantes, têm agido da mesma forma, baseados na letra “b” do artigo 13 da Convenção, que diz que a autoridade judicial não é obrigada a ordenar o retorno imediato da criança se ficar provado que existe “um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”. Especialistas ouvidos dizem que esta deve ser uma exceção usada apenas em situações extremas, em que o risco tenha sido cabalmente comprovado. Mas, no Brasil, virou a regra.
Os mesmos especialistas dizem que, agindo assim, a Justiça brasileira tem rasgado a Convenção de Haia.
O espírito da convenção é o contrário disso: risco existe quando a criança é mantida fora de alcance por tempo longo o suficiente a ponto de causar danos aos laços afetivos que a une a pai ou mãe.
À luz do caso Sean, há quem negue isso? O suposto risco de dano psíquico alegado quatro anos atrás, se existiu, terá sido maior do que o dano psíquico que essa criança está sofrendo hoje efetivamente? Lá atrás, Sean era uma criança adaptada à mãe, ao pai e a Nova Jersey, onde morava havia quatro anos. A Justiça americana saberia dizer se havia ressalvas a fazer ao pai. Agora, nenhum de nós gostaria de estar na pele do juiz brasileiro que terá de decidir o caso, causando, inevitavelmente, sofrimento inenarrável à família brasileira, à família americana, mas, sobretudo, a Sean.
Moral da história: o império da lei visa mesmo a evitar a barbárie.