Não é pequena a herança de mazelas deixadas por qualquer ditadura. A depender da duração do regime de exceção, os quadros políticos não são renovados, e por isso cai a qualidade da representação na volta à democracia. Quanto mais longa a ditadura, pior. A repressão política e a ausência de um estado de direito democrático deixam marcas difíceis de cicatrizar no retorno às liberdades e na reconquista dos direitos civis. No caso brasileiro, várias das distorções existentes na Constituição de 88 derivam dessa herança: leniência no tratamento da criminalidade e excessiva liberalidade nas regras de funcionamento de partidos, entre tantos aleijões.
Além disso, a sociedade saiu de 21 anos de regime fechado tolerante com tudo aquilo que leve o adjetivo "social". Em nome do "social" relaxa-se diante da favelização, da desordem urbana generalizada, de homicídios, de agressões a preceitos constitucionais no atacado e no varejo.
Uma explicação pode estar no fato de que embriões desses tais movimentos enfrentaram a violência de Estado ao lado de várias outras tendências políticas e ideológicas, fizeram parte da ampla aliança de resistência à ditadura. Mas, passados 23 anos de estabilidade democrática, já é mais do que tempo de se entender que não se consolidará a democracia se o império da lei, o estado de direito não for preservado, sem concessões. Também é evidente que tendências políticas que enfrentaram a ditadura defendiam a democracia apenas como tática. Queriam - e alguns ainda querem - executar um projeto autoritário, só que com eles no poder. Nem todo "social" é a favor das liberdades democráticas. Em última análise, sequer levará o bem-estar às massas.
Já passou da hora de agentes públicos deixarem de ser tíbios diante das ilegalidades cometidas sob o guarda-chuva do "social". Esta postura, observada também no governo FH, mas que chega ao ápice intolerável na era Lula, solapa as instituições democráticas. Particularmente, é grave ameaça quando se aproxima um período eleitoral em que há a possibilidade de grupos que drenam recursos públicos para projetos ideológicos específicos serem retirados do poder pelo voto, dentro das normas usuais numa democracia. Pavimenta-se o terreno para tentações de sabotagem às práticas eleitorais saudáveis.
Este é o pano de fundo da correta iniciativa do presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, de alertar para a ilegalidade na atuação de organizações de sem-terra - MST à frente - e, em específico, na transferência de recursos públicos para esses grupos, que vivem na semiclandestinidade e atuam ao arrepio da lei, com a conivência de agentes públicos.
Como noticiou O GLOBO ontem, nos últimos sete anos - inclui, portanto, a gestão FH - foram dados a essas organizações R$49,4 milhões em verbas oficiais. Claro que parte substancial desse dinheiro do contribuinte financiou ilegalidades. As mais recentes: quatro assassinatos em Pernambuco e uma onda de invasões no interior de São Paulo, fatos que motivaram o presidente do STF a se pronunciar.
É imperioso que a Justiça, o Ministério Público, o Poder Legislativo, o Executivo e a própria sociedade façam uma reflexão séria sobre os riscos criados por esta subjugação da Lei a interesses desestabilizadores que atuam contra a democracia valendo-se do quadro social do país