domingo, fevereiro 15, 2009

Míriam Leitão Verão do caudilho

O GLOBO

Quando Chávez perdeu o referendo para a presidência perpétua em 2007, ele disse que aceitava. No governo brasileiro, os que o defendem disseram que isso era prova de sua convicção democrática. Era um recuo estratégico. Ele volta hoje às urnas com a mesma proposta e o mesmo método de intimidação da oposição. Tem chance de ganhar, mas não importa: se perder, vai insistir até vencer.

Hugo Chávez não é democrata, por mais eleições que promova. Ele faz uma eleição por ano, é um governo plebiscitário que toma de assalto as instituições, ameaça a imprensa, encurrala a oposição, cria milícias armadas e usa os cofres públicos como caixa de campanha. Chávez é a marca do retrocesso que a América Latina vive num momento que poderia corrigir seu passado que oscila entre as ditaduras, as breves democracias e o caudilhismo.

Nos dez anos em que governa a Venezuela, Chávez conseguiu uma proeza: enquanto o petróleo vivia a sua mais longa e espetacular disparada de preços, a produção caiu e a empresa estatal ficou mais endividada. A queda de um milhão de barris/dia de produção em época de boom é consequência direta da politização da PDVSA. Depois da greve de 2003, o governo Chávez demitiu os técnicos mais qualificados da companhia e inchou a máquina com chavistas. Na última eleição, o presidente da empresa de petróleo disse, em local público, que para trabalhar lá teria que ser "vermelho, vermelhinho": a cor do partido de Hugo Chávez.

É um tempo desperdiçado, em que o país poderia ter dado um grande salto e reduzido de forma permanente os muitos males sociais do país. Houve investimentos nos "barrios" (favelas), mas muito menos do que poderia, pelo salto das receitas fiscais do país com o petróleo. Houve políticas de transferências de renda aos mais pobres, mas de forma personalista, e não como política de erradicação da pobreza extrema. Houve instalação de mercados populares com comida mais barata, mas sua hostilidade em relação às empresas foi tão grande que o país vive em desabastecimento. O dinheiro transferido foi corroído por uma inflação que superou 30%. Este ano, os economistas independentes estão prevendo que o PIB pode contrair 2% e a inflação chegar a 40%. Nestes dez anos que poderiam ser de progresso, a violência aumentou: o número de homicídios quase triplicou.

Com o uso sistemático da máquina pública como plataforma de propaganda, com a intimidação dos opositores e a apropriação das instituições, ele foi demolindo as virtudes de um estado democrático. Aumentou o número de juízes da Suprema Corte para dominá-la, mudou o Conselho Nacional Eleitoral para subjugá-lo, cassou a concessão da emissora de televisão RCTV como uma das formas de ameaçar a imprensa. Quando perdeu as eleições em Caracas, em novembro, ele assaltou o governo regional: em dez dias Chávez encampou todas as 93 escolas da rede metropolitana, 30 hospitais, 22 cartórios e o canal Ávila TV. No início do ano passado ele já tinha passado o comando da Polícia Metropolitana para o Ministério do Interior. O golpe do referendo que faz neste fim de semana é para acabar com outro pilar da democracia: a alternância no poder. Sem ela não há democracia. Presidência perpétua é ditadura. Ele tem dito que está preparado para ficar até 2030 ou no mínimo mais dez anos.

O chavismo é o caudilhismo autoritário que a América Latina já conheceu no passado. E Chávez tem alunos diletos que são financiados por ele e seguem seus métodos na Bolívia e no Equador. Agora seus financiados terão que enfrentar a escassez fiscal de um período de queda do preço do petróleo. Na Colômbia, seu inimigo Alvaro Uribe se iguala a ele neste ponto: também sonha com presidências intermináveis. Na Argentina, os Kirchner não estão em condições de pensar em terceiro mandato, mas continuam o desgoverno que reforça a tendência do país ao declínio.

Países da região produtores de metais, commodities agrícolas e energia poderiam ter se preparado melhor para os tempos difíceis atuais. Poucos fizeram isso. Alguns, como a Venezuela e a Bolívia, perderam tempo e investimento na politização excessiva, na polarização do país.

O Brasil tem a vantagem de se sair melhor quando comparado com os vizinhos trapalhões. Aqui, a ideia do terceiro mandato veio e foi embora. Tomara que definitivamente. Mas a semana passada foi bem um retrato dos nossos desvios: o presidente consumiu todo o tempo no palanque, fazendo coincidir encontros municipalistas com aniversário de partido, política contra a crise com distribuição de benesses pré-eleitorais. A ministra-candidata segue o que seu mestre mandou e ensaia seu personagem eleitoral. O erro do presidente sobre a estatística do analfabetismo em São Paulo — gritado diante de três mil prefeitos — foi tão absurdo que, com métodos orwellianos, o Palácio do Planalto corrigiu na transcrição do discurso. O uso da máquina para propaganda extemporânea foi tão abusivo, que só ficou menor diante dos absurdos cometidos pelos outros poderes: o Congresso em seu pântano, o STF em seu delírio de soltar condenados numa interpretação exótica do que seja o direito de defesa.

Hoje é mais um dia de ver a insensatez da Venezuela. Se Hugo Chávez perder, ele vai dividir mais o país, ameaçar mais os opositores e tentar de novo adiante. Se ganhar, dará outro passo para o totalitarismo. No Brasil se pode, ao menos, torcer para que os excessos das instituições sejam corrigidos pela própria democracia.

Com Leonardo Zanelli